Não adianta pensarmos
de forma diferente: a imagem que se forma na retina, a forma natural de vermos
o mundo que nos cerca, é o invés daquilo que entendemos. De pernas para o ar,
se quiserem.
É o nosso cérebro
que a torce, retorce e torna a torcer, fazendo com que interpretemos o mundo de
pernas para baixo. Uma inversão daquilo que, organicamente, vemos.
Há meio milhar de
anos Mestre Gil escreveu o que abaixo transcrevo. Esta é uma imagem feita em
sua honra.
Entra
Todo o Mundo, rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que perdeu; e
logo após, um homem, vestido como pobre. Este chama Ninguém e diz:
Ninguém
: Que andas tua aí buscando?
Todo
o mundo: Mil cousas ando a buscar :
delas
não posso achar,
porém
ando porfiano
por
quão bom é porfiar.
Ninguém
: Como hás nome, cavalheiro?
Todo
o Mundo: Eu hei nome Todo Mundo
e
meu tempo todo inteiro
sempre
é buscar dinheiro
e
sempre nisto me fundo
Ninguém:
Eu hei nome Ninguém,
e
busco a consciência
Belzebu
: Esta é boa experiência:
Dinato,
escreve isto bem.
Dinato
: Que escreverei , companheiro ?
Belzebu
: Que ninguém busca consciência,
e
todo mundo dinheiro.
Ninguém
: E agora que buscas lá?
Todo
o mundo : Busco honra muito grande.
Ninguém
: E eu virtude, que Deus mande
que
tope com ela já.
Belzebu
: Outra adição nos acude:
escreve
logo aí, a fundo
que
busca honra todo mundo
e
ninguém busca virtude.
Ninguém
: Buscas outro mor bem qu'esse?
Todo
o mundo: Busco mais que me louvasse
tudo
quanto eu fizesse.
Ninguém
: E eu quem me repreendesse
em
cada cousa que errasse.
Belzebu
: Escreve mais.
Dinato
: Que tens sabido?
Belzebu:
Que quer em extremo grado
todo
o mundo ser louvado,
e
ninguém ser repreendido.
Ninguém:
Buscas mais, amigo meu ?
Todo
o mundo: busco a vida a quem ma dê.
Ninguém
: A vida não sei o que é,
a
morte conheço eu.
Belzebu
: Escreve lá outra sorte.
Dinato
: Que sorte?
Belzebu:
Muito garrida:
Todo
o Mundo busca a vida
e
ninguém conhece a morte.
Todo
o Mundo: E maisqueria o paraíso,
sem
mo ninguém estorvar.
Ninguém
: E eu ponho-me a pagar
quanto
devo para isso.
Belzebu
: Escreve com muito aviso.
Dinato
: Que escreverei ?
Belzebu:
Escreve
que
todo o mundo quer o paraiso
e
ninguém paga o que deve.
Todo
o Mundo: Folgo muito d'enganar,
e
mentir nasceu comigo.
Ninguém:
Eu sempre verdade digo
sem
nunca me desviar
Bellzebu:
Ora escreve lá, compadre,
não
sejas tu preguiçoso.
Dinato:
Quê?
Belzebu:
Que todo o mundo é mentiroso,
E
ninguém diz a verdade.
Ninguém:
Que mais buscas?
Todo
Mundo: Lisonjear.
Ninguém:
Eu sou todo desengano.
Belzebu:
Escreve, ande lá mano.
Dinato
: Que me mandas assentar?
Belzebu:
Põe aì mui declarado,
Não
te fique no tinteiro:
Todo
o mundo é lisonjeiro,
e
ninguém desenganado.
(Excerto de “Auto
da Lusitânia”)
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