domingo, 21 de outubro de 2018

Ainda sobre o fazer-se e divulgar-se fotografias.




Dividiu-se a sociedade portuguesa sobre o publicar de fotografias de três foragidos à justiça. Algemados, no chão, com olhar de presa acossada, temendo pelo seu futuro imediato mas, ainda assim, com alguma arrogância no rosto. Para ajudar à festa, um dos detidos está em tronco nu, reforçando a ideia de mau trato ou vergonha ou submissão.
E a sociedade dividiu-se com dois argumentos:
- A populaça, sedenta de vingança e satisfeita com a captura de criminosos violentos, aplaudindo as forças policiais que em pouco tempo cumpriram a sua missão. E invectivando os detidos;
- Os que argumentam que a justiça, nas suas diversas formas institucionais, não deve humilhar ninguém e seguir os trâmites estabelecidos. E que estas fotografias, assim feitas e divulgadas, pouco ou nada respeitam o ser humano, mesmo em tratando-se de criminosos.
Vou, aqui e agora, deixar de parte a questão da eventual culpabilidade dos fotografados. E da forma como estão retratados.
Vou, antes sim, ponderar da legitimidade do registo e sua divulgação. Destas e de quaisquer outras pessoas.
Por muitas voltas que possamos dar ao assunto, é mais que óbvio que os retratados não foram questionados sobre se autorizariam ou não o registo. Ou a divulgação.
O que diferencia, então, estas fotografias de outras, em que os retratados estão em situação de não se pronunciarem? Feitas à distância e à socapa ou de surpresa e de corrida no meio da multidão. No meio de uma actividade banal, como caminhar na rua ou num enlace afectuoso e mais próximo com alguém. Ou, no outro extremo da escala, aquelas outras também feitas à sorrelfa mas consumidas até à exaustão, da execução por enforcamento de Saddam Hussain.
A actual disseminação de aparelhos de captação de imagem, estática ou animada, em que qualquer um pode possuir, usar e divulgar registos, faz com que a imagem, mais que documento, mais que registo para os vindoiros, mais que expressão pessoal, mais que arte (seja lá isso o que for), seja uma forma de competição. Em que os produtores de imagem procuram ir mais longe na sua actividade, com trabalhos mais e mais ousados, mais e mais impactantes, mais e mais aplaudidos. Mas menos e menos éticos, menos e menos respeitadores dos princípios básicos de respeito pelo próximo, menos e menos civilizados.
A civilização é algo evolutivo, ajustando comportamentos e éticas em função dos tempos, das modas e das técnicas. Temos toda a história das civilizações para o demonstrar. E é igualmente ela que nos conta – saibamos nós ouvi-la – que os picos tecnológicos são, regra geral, o início do seu declínio.
Os padrões de comportamento, quantas vezes baseados na competição por uma afirmação social, levam a que o respeito pelo individuo, pelo grupo, pelo todo, percam importância na luta desenfreada por “um lugar ao sol”.
E isto é válido nas relações comerciais, no domínio pelos meios de produção de bens, nos relacionamentos afectivos, nas relações entre povos. E na fotografia.
A “democratização” da produção da imagem material, com o seu fácil acesso, produção e divulgação, se tem a vantagem de permitir evidenciar quem tem potencialidades criativas para além das posses materiais, também permite ou incentiva a que os escrúpulos fiquem na gaveta, escondidos entre meias e likes.
Por outro lado, a facilidade com que a imagem é divulgada sem filtros éticos, faz com que o seu consumo se transforme num “vício”, em que o consumidor quer mais e mais e mais. E o procure. E o aplauda, para gaudio de quem produz.
E, nesta desenfreada procura de afirmação social por parte de quem faz fotografia (ou vídeo), pouco importa quem são os fotografados e em que circunstâncias. Tornando cada um presa fácil dos caçadores de imagens. Mesmo que não queiramos ser caçados.
E, ponderando os direitos e as liberdades de uns e de outros, resta a quem não queira ser fotografado ficar em casa, de janelas fechadas. Que os gritos de “liberdade artística” ou “liberdade de informação” sufocam e emudecem os que se recusam a ser registados.

No caso específico dos foragidos assim fotografados, estes nem tiveram possibilidade de se recusarem a tal. A diferença entre estas fotografias e as feitas no jardim zoológico aos animais na jaula é tão ténue que não a distingo.
E, no entanto, afirmamo-nos como seres superiores, com inteligência e alma.
Confesso que não vejo grande diferença entre estas fotografias, feitas em pleno século XXI, e as que foram feitas a mulheres francesas no final da 2ª guerra mundial, acusadas de colaboracionismo e relações intimas com os alemães. Ou das “street photography” dos tempos modernos.

Imagem palmada da net

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