sexta-feira, 8 de maio de 2015

O acto fotográfico





A invenção da fotografia veio revolucionar a produção e posse da imagem.
Passados milénios desde a primeira gravura rupestre ou desenho na areia, finalmente a representação pictórica estava ao alcance de todos, deixando de ser necessário possuir dotes naturais para bastar saber fazer.
A técnica aliou-se à arte e o retrato, a paisagem, a informação visual, passaram a fazer parte do quotidiano.
Há quem afirme que a fotografia veio democratizar a imagem.
Século e meio depois, o advento do digital veio concretizar esta afirmação.
A fotografia deixou de ser o misterioso resultado da alquimia secreta do laboratório, mesmo que na lojinha do centro comercial, para estar ao alcance de todos. Pelo menos nas sociedades ocidentais ou ocidentalizadas.
Uma câmara, mesmo que embutida num telemóvel, e um computador pessoal e todo o processo técnico da produção fotográfica se banalizou.
Feliz banalização!
Este acesso “fácil” à produção da imagem fez com que muitos, que há vinte anos nem suspeitariam que poderiam ter satisfação no fazê-lo, hoje o possam descobrir. E levar a que muitos, com capacidades bem para além do domínio da técnica fotográfica, a possam usar com sucesso. Tanto no campo pessoal do acto criativo como no campo profissional e sucesso material.
E todos os dias surgem bons fotógrafos, que mais que saber fazer, são capazes de criar e inovar na produção da imagem.

Mas este realmente democratizar da imagem com o advento da técnica tem contrapartidas.
A fotografia já não é, hoje, só um acto criativo ou comercial. É também uma actividade lúdica e social.
E é ver, nos fins-de-semana, como grupos de gente com equipamento fotográfico se espraiam pelos jardins e praças, apontando as suas objectivas para qualquer coisa que reflicta a luz e seja fotografável. No meio de risadas, bom humor e salutar convívio, o que estes fotógrafos procuram não será, talvez, a expressão plástica daquilo que sentem (antes ou enquanto confrontados com o assunto fotografado) mas antes a competição em que cada um procura melhor dominar a câmara e melhor fotografar um assunto comum a todos.
Será, esta actividade, um acto de criação colectivo, uma mestria artesanal da moda fotográfica, uma socialização em torno da produção da imagem.
Sem dúvida que é fotografia, no seu sentido etimológico e técnico.
Será, também, uma forma de aprendizagem já que, ao ver o que o companheiro do lado fez, se tenta fazer equivalente nas mesmas circunstâncias. Do ponto de vista técnico e estético.
Mas é o relegar para segundo plano a relação íntima da criatividade. É um menorizar a relação do fotógrafo com o assunto. É um deixar de parte a criatividade individual para valorizar a criação colectiva. É a produção em uníssono de imagens fotográficas equivalentes ou iguais.
A socialização em torno da fotografia não é errada. E não o é pelo simples facto de que quem o pratica encontrar nisso satisfação ou felicidade. E isso não é – nunca – errado.
Mas os aspectos criativos, a busca pessoal de ir mais longe, a intimidade necessária para transpor para a matéria pensamentos ou sensações ficam muito limitados.

Não tenho dúvidas que o acima exposto irá deixar irritada ou incomodada muita gente. Muito boa gente, honesta e sincera no que faz e pensa. Gente que será capaz de me mandar às urtigas por o dizer.
Mas antes que, além de urtigas, me lancem pedras, sugiro um pequeno exercício.
Escolham uma mão-cheia de fotógrafos que admiram. Não importa a idade, nacionalidade ou época em que viveram. Gente de cujo trabalho gostam e que, de um modo ou do outro, admiram e que gostariam de fazer igual ou equivalente.
Procurem saber sobre as suas vidas, métodos e grupos em que se envolveram. Procurem saber como conseguiram ou conseguem eles fazer os trabalhos que admiram. Paisagem, retrato, natureza morta, publicidade, reportagem, moda…
Constatarão, estou certo, que na esmagadora maioria dos casos esses trabalhos foram feitos na intimidade da relação do fotógrafo com o assunto e a câmara. Mesmo que rodeados de uma equipa de técnicos e fotógrafos.
A socialização que praticam ou praticavam em torno da fotografia passa ou passava pela troca de ideias e conhecimentos. Pela partilha de experiências e truques. Pela análise dos resultados e sugestão de abordagens. Pelo encontrar pistas que permitam ir mais longe. Não por fotografarem em grupo.

Tenho para mim, do que sei de outros fotógrafos e da minha própria experiência enquanto tal, que o acto fotográfico criativo é tão solitário quanto o escrever de um poema, o pintar de uma tela ou o compor uma melodia. É uma relação quase que narcisista de cada um consigo mesmo, uma intimidade solitária.
Nada disto impede a socialização em torno da fotografia. Muito pelo contrário!
Funcionar em circuito fechado, sem ir beber a outras fontes ou receber o feed-back do que se faz é limitador da evolução e criatividade.
Mas a sugestão que posso dar àqueles que querem levar a fotografia mais longe que apenas um passatempo é que o façam também ou principalmente a solo, procurando o diálogo íntimo com os assuntos que fotografam bem mais que com um companheiro de fotografias.

Na imagem? Uma câmara que encontrei nas mãos de um turista, em pleno centro da cidade de Lisboa.
Pelas palavras que trocámos e pela forma como tratava a luz e a câmara, sabe e gosta do que faz.
E, também pelas palavras que trocámos, solitariamente à caça de imagens. Naturalmente. 

By me

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