terça-feira, 26 de maio de 2015

Fotografia - Cá e lá





A abordagem generalizada à fotografia passa por ir longe, a terras distantes, registar o que por lá acontece. Actos humanos, actos da natureza, paisagens. E usar esses registos para exibir as belezas ou denunciar os horrores que por lá aconteçam.
Este é o sonho da maioria dos que começam a fotografar, é o desejo escondido dos que já fotografam.
Essa não é a minha abordagem. Nem o meu sonho ou desejo.

Entendo que a fotografia – o registo lúmico do que existe – pode ser feito mesmo à porta de casa, no jardim ao fundo da rua, no baldio a seguir ao bairro, na avenida principal ou rua secundária da minha cidade.
Entendo que o mundo – o universo – é composto de grandes – enormes, infinitos – eventos. As galáxias, as guerras, as sobrevivências das espécies. Mas também pelas muito pequenas coisas, triviais, que sucedem em qualquer lado. Ao meu lado. O desabrochar da flor do cardo, a luz que rasa e evidencia a textura de uma fachada, o horror do maltratar entre seres humanos, sem sangue ou tragédias evidentes.
Entendo que as belezas e horrores acontecem em todo o lado.
Mas também entendo – sei – que nos é bem mais fácil, enquanto seres humanos acomodados ao nosso próprio quotidiano, sentirmo-nos emocionados para o bem e para o mal com o que acontece lá. O belo, se for lá, alimenta os nossos sonhos; o lá, se for horrendo, alimenta os nossos pesadelos mas também serve de exorcismo ao pensarmos que lá é pior que cá.
E a fotografia feita lá longe alimenta os sonhos e pesadelos.
Já a fotografia feita ao pé da porta é incómoda! No belo ou no horrendo. Que nos mostra aquilo a que nós mesmos não damos valor, que nos mostra a nossa incapacidade de mudar o que de mau nos cerca. Que nos coloca e destaca o quão acomodados estamos.

Claro que fotografar ao pé da porta dá mais trabalho. Muito mais trabalho. Há que, mais que olhar, ver o que nos cerca, aquilo que já nos é tão habitual que nem disso damos conta. Há que “fazer excursões ao próprio quarto”, há que fazermos turismo na nossa própria rua, há que ter um espírito crítico em relação ao nosso próprio mundo. Há que descobrir o que de belo ou horrendo existe debaixo dos nossos próprios pés ou em frente ao nosso próprio nariz.
É mau ver a fome lá longe. Emociona-nos. Mas é pior voltar a cara aos que todos os dias vêem comer do nosso caixote do lixo.
É lindo ver as águas límpidas de uma ilha paradisíaca. Mas é tão belo quanto a delicadeza com que a abelha se alimenta da madressilva que a vizinha mantém regada e viçosa.

A linha do horizonte – aquele lugar aparentemente inatingível e com que sonhamos ou que tememos – não tem que estar lá longe. Pode estar – e está – à distância de um braço mais meio centímetro. Por vezes, do outro lado do espelho.

Mesmo em fotografia.

By me

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