quinta-feira, 14 de fevereiro de 2013

Taxidermista




Há coisa de umas três semanas encostei-me num balcão de uma cafetaria num centro comercial para uma inocente bica cheia.
Já lá tinha parado, que gosto do café ali servido e há por lá um par de olhos lindos que andei à espera de ocasião para fotografar. Já o fiz.
Mas o homem que estava na caixa diz-me, enquanto registava e me entregava talão e troco:
“Você trabalha na empresa “De Tal”, não é? Agora, sem a barba, quase não o reconheci, mas esse cabelo comprido também é inconfundível.”
Fiquei varado! Como diabo podia ele saber isso, quando vou tendo bastante cuidado em não o divulgar? E quando nunca o tinha visto por lá, apesar das inúmeras visitas de estudo de que somos alvo? Perguntei-lho.
“É que, sabe, vi uma reportagem sobre a sua empresa e numa das imagens o senhor estava lá. Na altura reconheci-o logo pela barba como sendo um cliente aqui da loja.”
Se tinha ficado estupefacto, passei ao estado de furioso! Que raio! Desde há muitos decénios que faço questão que não captem a minha imagem, seja por que processo for, quando em trabalho.
A minha imagem pertence-me e dela quero e posso fazer o que quiser. Na divulgação e no impedir a sua divulgação. E se esta questão pode ser discutida se o lugar for público, o evento em causa for público e quem faz as imagens estiver credenciado para tal, num lugar privado como seja uma empresa não há discussão possível. A minha vontade sobre a minha imagem é soberana e prevalece sobre quaisquer outras, por muito interessantes ou poderosas que possam ser.
É uma questão ética. É uma questão do que existe escrito na lei. É uma questão do que existe escrito na Constituição. É, em última análise, uma questão de respeito pela pessoa cuja imagem se pode ou não captar.

Tenho advogado, desde sempre, que o advento da fotografia ou vídeo digitais vieram democratizar a produção de imagem. Do mesmo modo que a fotografia veio democratizar a produção e posse de retratos, por contra-ponto aos produzidos em pintura.
O relativo baixo custo das câmaras e demais acessórios, por via da electrónica e produção em massa, acrescidos do custo zero de cada fotografia e respectivo tratamento e forem tratados em casa num vulgar computador, faz com que milhões de pessoas tenham acesso ao acto de fotografar. Coisa que não acontecia, naturalmente, quando as câmaras eram meramente mecânicas e com as exigências que tais mecanismos implicam na sua produção e quando cada vez que se premia um disparador se pensava no custo da película e respectivo processamento.
Esta democratização da fotografia é altamente positiva, já que veio permitir que muitos tivessem acesso a ela, descobrindo assim o gosto que possam ter pela imagem e as potencialidades criativas que possuem. O que era impensável quando era dispendioso. E é particularmente notório este fenómeno, tanto nos jovens em idade escolar como nos adultos.
Bem-vinda a fotografia digital!

Aquilo a que não posso, de forma alguma, dar as boas-vindas é o modo como a actividade de registo de imagem é encarada pela esmagadora maioria dos possuidores de uma câmara.
Entendem que a simples posse lhes dá o direito de tudo registarem, de tudo guardarem, de de tudo se apropriarem, sem nunca considerarem as consequências práticas desses registos e das suas divulgações nem de que forma pensam os fotografados sobre o acto de serem fotografados.
O modo como hoje se dispara a câmara sobre tudo o que mexe ou tem luz recorda-me os velhos filmes do Oeste Americano, onde os “bons” sacavam e disparavam as suas pistolas sobre os “maus” ou os índios com uma displicência assustadora, como se a vida dos seus alvos valesse menos que o custo da munição. E, bem mais grave ainda, matavam inconsequentemente e com o aplauso do público.
Hoje aquilo de que se “saca e dispara” com o mesmo à-vontade não projecta uma bala mas capta a luz vinda do alvo.
Mas as suas consequências podem ser tão graves quanto uma bala, pese embora a eventual beleza da sua estética ou força da sua mensagem.
Disse-me alguém que “Um fotógrafo é um taxidermista do tempo”. Mas se não houver cuidado, se o respeito p’lo próximo for nulo, também se é um assassino de emoções e um carrasco da privacidade.
Já disparou sobre alguém hoje?

By me 

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