sábado, 25 de dezembro de 2010

Cigarros 9 - Fotografia 0



Daquilo que muito se fala sobre o Natal e a festa da família, deixa muito de fora.
A consoada prolongada, com ou sem missa, faz sair da cama já tarde, a menos que haja petizes em casa. E mesmo que se saia da cama, o sair de casa já é mais difícil. Mesmo com algum almoço familiar na mira, atrasa-se sempre o enfrentar o frio e húmido amanhecer.
Mas há quem, logo cedo, esteja na rua. Para além de cívicos, soldados da paz, motoristas escalados, diferentes são os que fazem de 25 de Dezembro um dia mais ou menos normal. Ou completamente diferente.
Tem sido nesse sentido que madrugo nesta data e vou ao seu encontro no centro da cidade capital. Rossio, Restauradores, Praça da Figueira, Martim Moniz, Ruas Áurea, Augusta, Prata e intermédias, Praça do Comércio… O que acontece aqui bem cedo de manhã neste dia?
Pelo terceiro ano consecutivo lá vou. Este, confesso, foi o mais penoso. De sair da cama, de enfrentar a chuva miudinha mas molhante até aos ossos, o frio…
Foi já tarde que lá cheguei mas, ainda assim, a tempo de ver abrir o comércio. Qual? O “para turista gastar” mas gerido por orientais, Indianos em regra. Tal como eram eles que me propunham a compra de guarda-chuva, já que caminhava apenas com o boné enfiado até aos olhos.
Café? Só os conhecedores dão com ele, já que nem a Suiça ou na estação do Rossio estão abertas! Um na rua das Portas de Santo Antão, um tasco que, além de café tem sandes de tudo e álcool com várias cores e graduações. Um outro, salvo erro na rua de São Nicolau, abre mais tarde, aí pelas dez e meia, e também tem café e galão quente. Mas recomendo paciência a quem lá for, já que a língua dominante é o indiano e o português não é muito bem percebido, por estranho que pareça.
Um outro negócio ao invés de prosperar, definha: os pedintes. São cada vez mais, entre os que abordam os transeuntes e os que se limitam a estar encolhidos por sob um qualquer beiral, contando que a generosidade forneça a refeição ou dose do dia. Alguns e algumas conheço de vista, uma delas de outras paragens mais altas, ali do Jardim da Estrela. Portugueses, romenos, búlgaros, de África, indefinidos, há um pouco de tudo.
Quem também conheço, de ali encontrar dia sim, dia sim, são os vendedores de relógios de ouro, óculos de sol e outros produtos menos lícitos. Alguns reconhecem-me, do meu deambular, de umas trocas de palavras e de alguma fotografia feita a pedido. Um olhar cúmplice, um ligeiro aceno e nada mais, que sabem que daqui não levarão nada.
Claro que a baixa de Lisboa, neste dia, tem mais gente que esta: turistas. Alguns, raros, solitários, casais bastantes e de todas as idades, famílias com crianças ou adolescentes também se vêem. Este ano dominavam os orientais, ao contrário de anos anteriores. Com o guia e a câmara na mão, vão passando pelas pedras e gentes com vagar, que pouco há que fazer nesta data, mas numa abordagem superficial: os seus olhares pouco se detêm onde quer que seja. E quem vai estando, como eu, de saco às costas e câmara no ombro, vai apreciando a variedade de linguajar que ouve, das latinas às saxónicas, das eslavas às orientais. Mais ou menos o costume.
O que este ano não vi, para grande pena minha, foi tantas mãos dadas. Talvez por via do frio e da chuva, as mãos ou estavam embrulhadas em luvas ou enfiadas fundas nos bolsos. Ocasionalmente um “braço dado” ou um abraçar pelo ombro, mas poucos, que um guarda-chuva só protege uma pessoa. Mesmo aqueles que percebemos serem namorados recentes ou de decénios, mesmo esses preferem a protecção da sombrinha ao aconchego da companhia.
E em que mais é que esta manhã de 25 de Dezembro foi diferente das outras, na baixa Lisboeta? Pela quantidade de vezes que fui abordado por um cigarro. Nove, no total e em perto de três horas. Por nove vezes alguém se me dirigiu pedindo um cigarro, alguns lume também. Sempre homens, que as mulheres solitárias primavam pela ausência. Uns mais novos, outros já não tanto, todos com um ar que em tempos se chamou de “modesto”. Apenas dois eram assumidamente sem-abrigo. Os restantes talvez o fossem, mas não ousavam mostrá-lo, por medo ou vergonha. Destes nove, com dois fiquei um pouco mais à conversa que não apenas o aceder e dar: conhecemo-nos por causa da minha câmara de madeira, no Jardim da Estrela, e de ambos tenho o retrato e os olhos. Que agora e aqui não mostrarei, naturalmente.
Que fotografias trago? Quase nada. A chuva, o ambiente mais deprimente que o habitual e, talvez o factor principal, o meu próprio estado de espírito, não me deixaram “ver” com a objectiva.
Fica esta, de um dos raros momentos em que a luz do sol pareceu querer dar um ar da sua graça. Um arco que, sendo de volta perfeita, me pareceu muito abatido.
Quem sabe se, para o ano, trarei mais fotografias e cigarros para casa?


Texto e imagem: by me

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