É uma palavra que
todos conhecem mas da qual raramente nos lembramos. Um destes dias ouvi-a num
contexto curioso e fiquei com ela na cabeça.
Era a palavra que
me faltava e que melhor descreve alguns dos meus sentimentos.
Tenho pudor em
fazer certas fotografias.
Há 37 anos que
faço televisão. Comecei ainda no tempo do preto e branco e da aventura do início
da cor. Cem por cento, menos umas milésimas de unidade, das imagens por mim
captadas, registadas e transmitidas foram de ou com seres humanos.
No estúdio e no
exterior, dentro e fora do país, anónimos ilustres e ignóbeis figuras públicas,
ou qualquer outra combinação. Como entenderem.
Em todas elas, de
uma forma mais ou menos explícita, existiu uma cumplicidade no fazer dessas
imagens. A câmara estava lá, bem visível, e o cidadão sabe que eu estou lá, o
que estou a fazer e para quê. Uns exibem-se e quase que pagam para constar no
registo ou transmissão, outros são apanhados ao correr da objectiva, mas nada
há de sub-reptício.
Além do mais,
mercenário que sou da imagem televisiva, não me sinto eu, enquanto indivíduo, a
fazer aquelas imagens. Faço parte de uma equipa, de uma organização. A minha
co-responsabilidade na captação e utilização das imagens que faço é limitada.
Ainda assim, alguns escrúpulos que tenho tido ao longo dos tempos, têm-me
trazido alguns amargos de boca.
Já enquanto
fotógrafo a minha atitude tem sido diferente.
Raramente
fotografo pessoas desconhecidas ou anónimas. Pelo menos ao ponto de estarem em
evidencia no enquadramento ou de serem reconhecíveis.
Os trabalhos que
tenho feito a pedido (não gosto do termo profissional) têm sido na área do
teatro, da publicidade e da arquitectura, passando ao de leve pela reportagem.
Nestas
circunstâncias, as figuras fotografadas fazem parte do evento e querem “ficar
no boneco”.
Mas, sendo o Homem
aquilo que quero retratar nas minhas imagens pessoais - aquelas que faço para
minha satisfação exclusiva -, procuro fazê-lo sem que conste explicitamente
delas.
Aquelas imagens de
instantâneo – uma expressão, um gesto, um evento – que poderia fazer para meu
prazer e deleite, não as faço. Tenho pudor!
Com conhecidos,
próximos ou não tanto, sou mais atrevido. A cumplicidade existe, as pessoas em
causa sabem o que sou e o que faço e, se bem que possam não “se fazerem à
fotografia”, sabem que ela pode acontecer e comportam-se mais ou menos em
conformidade.
Agora os
estranhos, aqueles que apenas me conhecem de vista ou nem isso, vivem a sua
vida ignorantes da possibilidade de eu os poder fotografar. São o que são, sem
reservas, acanhamentos ou exibicionismos, alegres, tímidos, carinhosos ou bem
pelo contrário, inconscientes que um gesto, uma expressão, pode ficar registada
para todo o sempre.
Da mesma forma que
não espreito ou fotografo para dentro de janelas alheias, também tenho pudor em
o fazer quando estão da parte de fora delas.
Esta minha atitude
e sentimentos é tanto mais forte quanto mais “frágil” é a pessoa ou situação em
causa. As misérias, materiais ou outras, tantas vezes vistas em espaços
públicos, estão ali porque não podem estar em qualquer outro local privado.
Os pedintes,
vagabundos, sem abrigo, catadores de lixo, para não citar todos, são-no,
estão-no e fazem-no não por vontade própria mas como último recurso, muitas
vezes já sem pudor algum porque não se podem dar a esse luxo. A seguir a este
degrau…
Se eu soubesse,
com certezas ou alto grau de probabilidade, que o eu fazer estas imagens iria
de alguma forma melhorar-lhes a vida – na auto-estima, na fome, na saúde ou no
conforto – esta minha invasão das suas intimidades públicas poderia fazer algum
sentido.
Mas eu sei que do
meu acto de fotografar nada de diferente lhes acontecerá. Apenas ficarei com mais
um troféu de caça na minha galeria que, eventualmente, exibirei dizendo: “Vejam
o que eu vi, sintam o que eu senti!”
Poderão dizer os
fotojornalistas: “Mas uma das missões nobres do nosso ofício é denunciar as
misérias do mundo e tentar com isso melhorá-lo!”
É verdade que sim!
Tal como eu o faço com a minha câmara de vídeo, que é o meu ofício.
Mas as minhas
fotografias não se destinam a nenhuma publicação, de pequena ou grande tiragem.
Faço-as porque me dá prazer fazê-las e, raramente, exibi-las, se as entendo
como capazes e se me apetecer.
Se, de alguma
forma, as imagens que faço e exibo podem melhorar o mundo, não sei, ainda que o
tente. Mas prefiro fazê-lo mostrando os objectos, a luz, as atmosferas, as
consequências e as causas e não as pessoas em si mesmas, não violando a sua
privacidade pública.
Há uma palavra que
define o que sinto e que me inibe de fotografar amiúde desconhecidos:
Pudor!
By me
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