quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Mudar o mundo



Aconteceu há quase vinte anos.
Foi necessário acompanhar uma criança ao serviço de urgência aqui do meu bairro. Não seria nada de muito grave, mas haveria que ser vista por um médico.
Aquando do registo, constatei aquilo que já se sabe: a cor da pele pode ser bem o oposto da cor da alma. Uma funcionária estava a recusar a admissão de um doente com alegações fúteis. E rematou a sua argumentação com um portentoso “Se nós temos que andar com esses papeis, vocês também!”
Por “vocês” entenda-se pessoas de origem africana, que era o caso.
O doente foi-se embora, com o sofrimento estampado no rosto, mas eu não gostei da coisa. Tentei intervir, mas a raiva e falta de educação daquela mulher virou-se para mim. E, com receio que protelasse em demasia o atendimento urgente que necessitava, acabei por ficar calado. Não em paz, mas calado.
Feita a consulta e o diagnóstico, passada a receita e aviada na farmácia, fui à sede do centro de saúde e pedi o livro de reclamações. Aquilo a que assistira era demasiado grave para ser ignorado.
O funcionário que me atendeu, pese embora não me ter recusado o livro, propôs-me em alternativa eu regressar na segunda-feira seguinte (estávamos num sábado) para então escrever o que entendesse e conversar com o director do centro. Anuí.
Da conversa que tive com ele, na data aprazada, recordo três coisas:
A sua afabilidade e incómodo com o caso. Ele já sabia da história e estava já identificada a pessoa em causa. E duas frases, marcantes: “Sabe, eu não a posso colocar na retaguarda, que me estraga todo o serviço.” e “O meu problema não é falta de pessoal; é falta de pessoal competente.”
No final, escrevi o que tinha a escrever no livro de reclamações sobre aquela senhora arrogante e racista e o episódio que havia presenciado.

Passado algum tempo (talvez que duas semanas) recebo duas cartas.
Uma oriunda do ministério da saúde. Nela faziam-me saber que tinham recebido a minha reclamação, que iriam dar-lhe a melhor atenção, etc, etc, etc. Assinada pela então ministra da saúde, Maria de Belém.
A segunda vinha do centro de saúde e enviada pelo director com quem eu tinha estado de conversa. Informava-me ele que a funcionária em causa tinha sido retirada do atendimento ao público e, uma vez mais, pedia-me desculpas em seu nome, em nome do centro e nome de quem lá trabalhava.


Tenho por certo que cada um de nós não pode mudar o mundo em profundidade. Ele vai continuar a ser redondo e a girar em torno do sol.

Mas também tenho por certo que no centro de saúde do meu bairro não mais será recusado a alguém o atendimento de urgência tendo por base atitudes racistas.

By me

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