Pese embora a
manifestação ter sido convocada por uma central sindical e de haver um forte
cariz partidário ali espalhado, vi caras de todos os quadrantes, mesmo que de
direita, vi toda a gente daquele lado da barricada satisfeita pelo desfecho
anunciado.
E vi, acima de
tudo, um forte desejo de mudança com uma tónica comum a todos, não importa as
origens ideológicas:
“Mude-se isto, por
Portugal e pelos Portugueses”.
Foi um dia de
primeiras vezes. Várias.
Desde logo o que
sabemos sobre as questões político-partidárias e o desfecho do dia no
parlamento.
Mas também de
outras primeiras vezes.
Foi a primeira
vez, que eu saiba, que o largo fronteiro às escadarias da Assembleia da
República esteve interdito aos cidadãos.
Por questões de
segurança, foi a justificação oficial da polícia. Como local de evacuação para
quem se sentir mal em alguma das manifestações, foi a afirmação de um simpático
agente da PSP.
Foi também, que eu
saiba, que co-existiram na mesma rua (ou quase) duas manifestações, uma pró e
outra contra o governo. Aliás, o medo de confrontos por parte das autoridades
foi tal que levou a um exagerado aparato policial, estando visíveis lá em cima
muitas mais viaturas que em situações quiçá mais beligerantes. A ponto de uma
Norueguesa com quem falei e que veio de propósito para assistir a este dia, me
ter perguntado se se estaria à espera realmente de confrontos entre grupos
“rivais”.
Foi igualmente a
primeira vez, que eu tenha conhecimento, que foram usadas estas grades
anti-motim. De uma solidez quase que a toda a prova, quase que novinhas em
folha, solidamente soldadas às paredes com cabos de aço, dificilmente seriam
ultrapassadas por uma turba enfurecida. Muito menos por uma manifestação.
Interessante será reparar que estas grades só foram usadas do lado dos
perigosos comunas. Do lado dos conservadores pró-governamentais, as grades do
costume e nem sequer muito bem aplicadas.
E foi a primeira
vez que vi um fotógrafo retirar-se por via de insultos populares.
Presente estava um
dos decanos da foto-reportagem portuguesa, figura reconhecida pela sua
qualidade.
Cruzei-me com ele,
com umas graçolas de permeio, quando eu passava do lado conservador para o
rebelde pela ainda aberta porta no gradeamento e ele seguia em sentido
contrário.
Uns quinze minutos
depois vejo-o de novo do meu lado. E questionei-o sobre o motivo. Teria ele
preferido fotografar este lado da barricada, com alguma previsão de
acontecimentos que eu desconhecesse? Por uma questão de empatia? Por o outro
lado, com tão pouca gente, ser desinteressante?
A sua resposta
deixou-me atónito: “Sou jornalista e tenho que cobrir todo o evento. Mas
daquele lado reconheceram-me e expulsaram-me, chamando-me de comunista.
Deixei-os a falarem sozinhos.”
Foi, de facto, um
dia de muitas primeiras vezes!
Não seria difícil
reconhecer qual a posição defendida por cada lado da barricada.
Pelos dizeres,
pelas palavras de ordem, pelas faixas exibidas.
E pelos trajes,
por estranho que pareça.
De um dos lados
roupas caras, penteados do dia, barbas da moda, óculos escuros dispendiosos.
Do outro, roupas
comuns, muitas de trabalho, inúmeras de baixo custo, algumas muito coçadas.
E, que eu tenha
visto, só de um lado vi gente como na fotografia.
Consegue-se
imaginar de que lado?
Quando se soube do
efectivo resultado da votação da moção de rejeição, contadas cabeças e votos e
relatadas pela amplificação sonora, bem como por aqueles que, previdentes,
tinham consigo rádios e nos iam passando informações, a alegria foi
indescritível.
As palmas, os
abraços, mesmo beijos entre desconhecidos… não me recordo de ter visto algo
assim, e já por cá ando há uns tempos.
O grito, esse,
surgiu quase que por brincadeira de uma boca que conheço, de imediato repetida
por quem estava por perto e, em menos de nada, era o que toda aquela gente
gritava:
“Já caiu! Já caiu!
Vão p’ra puta que o pariu! Já caiu! Já caiu! Vão p’ra puta que o pariu!”
Aquele grito,
vindo do nada ou do fundo de uma alma, fugindo de todas as palavras de ordem
gritadas aos microfones, repetido daquela forma e com aquela força, deixou-me
arrepiado.
E mesmo agora,
umas horas depois e enquanto escrevo estas linhas, estou com pele de galinha.
Ouvia-se, neste
momento, a “Grândola, vila morena”.
By me
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