terça-feira, 3 de abril de 2018

Claro




Estamos em Abril e o mês tem inúmeros significados.
A melhoria notória do tempo, os polens, o terceiro período escolar… e a memória da revolução, claro.
Este “claro” é só para alguns, claro. Que, feitas bem as contas, talvez que a maioria dos portugueses de hoje não estivesse vivo ainda então. E, dos que estavam, alguns não guardam boas memórias. É normal, numa revolução.
Gostaria, no entanto, de contar uma memória. Que não é privada porque foi vivida por vários.

Na sequência da revolução deixou de existir ensino público segregado por género. Escolas e liceus, logo no ano lectivo seguinte, passaram a ser mistos, com rapazes e raparigas a partilharem aulas e pátios. E, principalmente, a partilharem-se.
Este novo e súbito modo de viver fez com que toda aquela raparigada e rapaziada andasse com as hormonas descontroladas. E, se lhe juntarmos o aprender a viver em democracia e em liberdade, alguns excessos se cometeram. Em diversos níveis.
Um deles foi a rápida deterioração do material escolar. Mesas, cadeiras, carteiras, por muito robustas que fossem e porque já idosas na sua maioria, iam sendo retiradas do activo por serem incapazes de cumprir a sua função.
Aquando do final do segundo período de ’75 partilhávamos, em muitas salas do liceu que frequentava, uma cadeira para dois rabos. Por “entusiasmante” que fosse, era pouco prático.
Pois alguns de nós passámos parte das férias da páscoa desse ano no sótão do liceu. Supervisionados por um continuo, e de ferramentas na mão, serrámos, martelámos e aparafusámos aquele mobiliário para o recuperar. Na medida do possível, claro.
Chegávamos a casa com as mãos doridas e empoladas de bolhas. Que não estavam elas habituadas a tais trabalhos.
Mas com a alegria estampada no rosto por sabermos que o futuro estava nelas e que o estávamos a construir.
O tempo passou e perdi o rasto à maioria dos que comigo ali ombrearam.
Acredito que parte dos que ali estiveram se tenham acomodado ao evoluir dos tempos. E que hoje, nas mesmas circunstâncias, reclamassem junto de uma qualquer autoridade ministerial por um concurso público para reparação ou substituição de mesas e cadeiras.
E sei que a maioria dos que hoje estudam assim procederiam, eventualmente com cartazes e dichotes à porta do liceu ou na avenida.
É fácil querer que “os outros” façam. E até pode ser divertido reclamar por isso.
Mas, as mais das vezes, esquecem-se que nós somos “os outros”. Nós somos a sociedade. E quando exigimos à sociedade estamos a exigir a nós mesmos. E que quando não intervimos não podemos esperar que “os outros” intervenham.
Felizmente que alguns dos de então não desistiram de fazer no lugar de exigir. E felizmente que alguns dos de hoje seguem o mesmo caminho.
Individualmente ou em grupo, as mais das vezes sem publicidade, avançam e fazem, “fazendo o bem sem olhar a quem”.

Dizem que se chega a velho quando se tem mais memórias que sonhos.
Tenho muitas. Mas também tenho o sonho com o haver mais gente a fazer que a pedir que se faça. E vou fazendo, claro.



By me

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