sexta-feira, 7 de outubro de 2016

A pinguinha



Àquela hora e naquele dia a estação do meu bairro estava quase vazia. O que fazia aumentar a solidão daquela senhora.
Bem idosa, sentada num banco, tendo à sua frente, junto à beira do cais, a sua bagagem: um saco de desporto com alça de ombro, dois sacos de ráfia plastificados, um trólei de compras. Qualquer deles bem cheios.
Um conjunto de volumes que seria demais para qualquer pessoa, muito demais para aquela idosa ali sentada. Sozinha.
Não gostei.
Não sabia dos motivos da solidão ou do carrego, mas não gostei.
E deixei-me ficar por perto, sem me intrometer. Em chegando o comboio logo ofereceria a minha ajuda. E sendo certo que eu sairia na última estação e não estava com pressa, alguma ajuda daria no desembarque, onde quer que fosse.
Na conversa já a bordo fiquei a saber que ia para o norte ter com família, mudando de comboio na estação do Oriente. E que fazia aquilo com frequência, incluindo o carrego, que aos poucos ia-se mudando daqui para lá. Só que, desta vez, havia tido mais olhos que barriga e no lugar do dois do costume acabara com quatro.
Em chegando à estação de destino comum, ajudei a descer e a instalar-se onde iria esperar ainda mais de uma hora pelo que a levaria lá para a terra.
Na despedida ouvi o que já não ouvia há muito. Muito mesmo:
“Obrigado pela ajuda. Não quer ir ali beber uma pinguinha?”
Não sei se se referia a uma pinga de vinho, se de cerveja, se de água. Mas a partilha ou a oferta de líquido – seja qual for – como forma de recompensa ou gratidão é algo ancestral, raro nos tempos que correm. Mesmo que o corpo humano seja composto, como é, de tanto líquido.
Recusei, naturalmente. Mas com receio de a minha recusa a ofender, tanto mais que aparentava estar menos que bem de dinheiro. Mas insistiu, numa sincera vontade de oferecer.
Desculpei-me com o facto de ir trabalhar em seguida (verdadeiro) e de não beber em trabalho (igualmente verdadeiro).
O seu sorriso foi de imediato explicado:
“Entendo. O meu falecido marido, que trabalhava aqui na CP, fazia o mesmo. Obrigado de qualquer modo”.

Juro que aquele dia feriado me correu bem melhor do que esperava!

By me

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