domingo, 23 de outubro de 2016

Um episódio



A história é velha. E, se bem a recordo, eu frequentaria então o que hoje chamam de sexto ano.

Quando entrei para o segundo piso do autocarro já a barraca estava armada: o cobrador, com a sua mala de trocos e alicate em riste, exigia o pagamento do bilhete e a senhora, revirando a sua mala, argumentava que teria deixado o porta-moedas em casa.
O argumento não convencia o façanhudo funcionário da Carris, que ameaçava com uma ida à esquadra para resolver a questão. E as lágrimas já corriam na cara da senhora.
Achei eu que esquecer o porta-moedas é legitimo e nada meritório de tal tratamento. E, enchendo-me de uma coragem que desconhecia, tanto mais tendo a idade que tinha, ofereci-me para pagar o maldito bilhete, usando para tal a minha parca semanada ou os trocos do lanche, já nem sei.
O bilhete foi pago, o cobrador foi ameaçar outros com o tirânico alicate e a senhora veio falar comigo. Não sei já o que conversámos, mas recordo o onde ela saiu (no Pote d’Água) e o onde eu saí (no Júlio de Matos).
Este episódio ficaria esquecido algures na minha memória, que o não contei em casa, não fora o que se lhe seguiu, uma semana ou mais depois.
Vinda pelo correio, uma carta para mim, com remetente de uma pessoa desconhecida, o que provocou um natural sururu lá em casa.
Com um sobrescrito do tamanho de um cartão de visita, continha um desses cartões em que no verso estavam escritas umas palavras de agradecimento. E soltos no interior alguns selos de correio, cujo somatório correspondia ao preço do bilhete que eu havia pago.
No meio de tudo isto, o que é realmente estranho e que me marcou até hoje foi a atitude da senhora, cujo nome nunca memorizei. Que o jogar a mão no quente do evento e obedecendo ao instinto acontece com qualquer um. Basta estar por perto e poder.
Agora reagir desta forma, deliberadamente, num agradecimento que lhe deu trabalho… Isso é que é raro de ver. E de saber, acrescente-se.
Passado que vai todo este tempo, este é daqueles episódios que não esqueço e que ajudaram a moldar o que sou ou fui.

Nem esqueço o alicate.

By me

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