Talvez que o
ter-me visto de amena cavaqueira com um antigo chefe daquela loja. Ou talvez o
eu ter usado de uma piada bem mais velha que ela e de que já nem me lembrava há
anos (- E precisa de mais alguma coisa? – Para já, só mesmo da caixa
registadora!). Ou da invulgaridade do tamanho e cor da minha pelagem. Ou fosse
lá pelo que fosse.
O certo é que acabámos
por trocar umas palavras muito para além das normais entre empregada de mesa e
cliente.
E, já não sei como
nem porquê, perguntei-lhe que formação tinha: se o 12º, se o 9º, se mais que
isso…
O seu sorriso
amarelo era estranho, à medida que eu ia colocando as possibilidades de
resposta, até que esclareceu:
“Tenho o 6º ano.
Faltam-me três disciplinas para acabar o 9º. Mas sabe como é: com estes horários
não é fácil acompanhar os estudos…”
Abanei todo, de
alto a baixo. E se estivesse de pé bem se daria por isso! Aquela fulana, nos
seus talvez vinte anos, a dizer aquilo com aquela tranquilidade… E arrisquei:
“Mas sabe que será
bom que acabe isso, mesmo que com algum sacrifício. E a sorte que tem em estar
aqui, neste trabalho e com essa farda. Que só o sexto ano, nos tempos que
correm…”
Não me deixou
terminar:
“Eu sei! Só com o
sexto ano não se é ninguém neste país. Mas eu quero fazer o 12º, dê por onde
der!”
Foi aqui que
saltei e perdi toda a eventual formalidade de circunstância imposta por uma
conversa com uma desconhecida:
“Você merecia era um
par de palmadas no sítio onde acabam as costas e começam as pernas!”
Ela abanou e abriu
muito os olhos. E eu continuei sem lhe dar tempo a que se escandalizasse muito
mais:
“Ninguém é ninguém,
tenha lá os estudos que tiver! Todos somos alguém, importantes e únicos, sejam
quais forem os estudos e/ou oportunidades! Temos é que fazer por isso e nunca –
nunca, oiça bem – deixar que alguém nos trate como se fossemos ninguém!”
Fiz uma pausa, até
porque na mesa do lado já olhavam para nós e ela tinha a farda da casa
envergada, e concluí bem mais baixo:
“Vá lá ver o que
aqueles querem que eu vou procurar aqui uma coisa para lhe mostrar.” E apontei
para o computador que tinha aberto na mesa. “Já a chamo!”
E fui procurar
algumas quadras de Aleixo, que lhe mostrei depois, explicando que ele era
analfabeto e que isso não o tinha impedido de ter sido quem foi. E
recomendei-lhe que procurasse numa livraria ou biblioteca o seu livro de
poemas.
“Mas você é
professor? De português?”
Tive que lhe dizer
que não, que esse não é o meu ofício. E qual o que tenho. E acrescentar que os “estudos”
tem duas importâncias: Uma social, que é o canudo ou diploma que apresentamos
numa candidatura a um emprego mais simpático e bem pago; a outra o abrir-nos as
portas a um mundo de conhecimento alargado e bonito, caso queiramos alimentar a
alma junto com o corpo.
Não sei quando
voltarei àquele restaurante. Nem se, em voltando, a encontrarei de turno ou
mesmo se ainda ali a trabalhar.
Mas se sim a tudo,
e com a curiosidade que lhe vi nos olhos, acredito que nessa altura já tenha
lido o “Este livro que vos deixo” e mais qualquer coisa. Incluindo os do 9º
ano.
By me
Sem comentários:
Enviar um comentário