terça-feira, 25 de outubro de 2016

Ninguém e alguém



Talvez que o ter-me visto de amena cavaqueira com um antigo chefe daquela loja. Ou talvez o eu ter usado de uma piada bem mais velha que ela e de que já nem me lembrava há anos (- E precisa de mais alguma coisa? – Para já, só mesmo da caixa registadora!). Ou da invulgaridade do tamanho e cor da minha pelagem. Ou fosse lá pelo que fosse.
O certo é que acabámos por trocar umas palavras muito para além das normais entre empregada de mesa e cliente.
E, já não sei como nem porquê, perguntei-lhe que formação tinha: se o 12º, se o 9º, se mais que isso…
O seu sorriso amarelo era estranho, à medida que eu ia colocando as possibilidades de resposta, até que esclareceu:
“Tenho o 6º ano. Faltam-me três disciplinas para acabar o 9º. Mas sabe como é: com estes horários não é fácil acompanhar os estudos…”
Abanei todo, de alto a baixo. E se estivesse de pé bem se daria por isso! Aquela fulana, nos seus talvez vinte anos, a dizer aquilo com aquela tranquilidade… E arrisquei:
“Mas sabe que será bom que acabe isso, mesmo que com algum sacrifício. E a sorte que tem em estar aqui, neste trabalho e com essa farda. Que só o sexto ano, nos tempos que correm…”
Não me deixou terminar:
“Eu sei! Só com o sexto ano não se é ninguém neste país. Mas eu quero fazer o 12º, dê por onde der!”
Foi aqui que saltei e perdi toda a eventual formalidade de circunstância imposta por uma conversa com uma desconhecida:
“Você merecia era um par de palmadas no sítio onde acabam as costas e começam as pernas!”
Ela abanou e abriu muito os olhos. E eu continuei sem lhe dar tempo a que se escandalizasse muito mais:
“Ninguém é ninguém, tenha lá os estudos que tiver! Todos somos alguém, importantes e únicos, sejam quais forem os estudos e/ou oportunidades! Temos é que fazer por isso e nunca – nunca, oiça bem – deixar que alguém nos trate como se fossemos ninguém!”
Fiz uma pausa, até porque na mesa do lado já olhavam para nós e ela tinha a farda da casa envergada, e concluí bem mais baixo:
“Vá lá ver o que aqueles querem que eu vou procurar aqui uma coisa para lhe mostrar.” E apontei para o computador que tinha aberto na mesa. “Já a chamo!”
E fui procurar algumas quadras de Aleixo, que lhe mostrei depois, explicando que ele era analfabeto e que isso não o tinha impedido de ter sido quem foi. E recomendei-lhe que procurasse numa livraria ou biblioteca o seu livro de poemas.
“Mas você é professor? De português?”
Tive que lhe dizer que não, que esse não é o meu ofício. E qual o que tenho. E acrescentar que os “estudos” tem duas importâncias: Uma social, que é o canudo ou diploma que apresentamos numa candidatura a um emprego mais simpático e bem pago; a outra o abrir-nos as portas a um mundo de conhecimento alargado e bonito, caso queiramos alimentar a alma junto com o corpo.

Não sei quando voltarei àquele restaurante. Nem se, em voltando, a encontrarei de turno ou mesmo se ainda ali a trabalhar.

Mas se sim a tudo, e com a curiosidade que lhe vi nos olhos, acredito que nessa altura já tenha lido o “Este livro que vos deixo” e mais qualquer coisa. Incluindo os do 9º ano.

By me

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