Ela tinha uns
olhos bonitos. Caramba! Como eram bonitos os seus olhos!
Não apenas a cor,
de um verde pálido, aquoso, quase transparente, como o formato, de um amendoado
estranho, suave, quase redondo não o sendo. Sem pinturas ou enfeites. Bonitos
de ficar a olhar, mesmo naquele autocarro já apinhado de gente.
Em condições
normais, na rua, com alguma calma e luz, certamente que a abordaria para os
fotografar. Deixar escapar uns olhos daqueles seria pecado. Mas…
Mas o treme-treme
do autocarro, o facto de aqueles olhos mal terem reparado em mim, divididos que
estavam entre o conversar com a senhora sentada à sua frente e o telemóvel no
facebook… difícil seria obter uma imagem daqueles olhos lindos de morrer.
E se os olhos são
o espelho da alma, estes seriam bem mentirosos. Que toda aquela beleza de olhos
era bem o oposto daquela alma negra e feia.
Sentada que estava
num dos bancos reservados a pessoas com necessidades especiais, bem que viu o
idoso que entrou de muletas. E rapidamente desviou o olhar para a tecnologia
que tinhas nas mãos.
Tal como os belos
olhos bem se fixaram, por uns instantes, naquela senhora com uma menina ao
colo. Mas foram atraídos por um qualquer detalhe na tarde quase escura lá de
fora.
Tal como varreram
o possível de ver no meio de toda aquela gente o outro já velho e também de
muletas que se agarrava com dificuldade a um varão do chocalheiro autocarro.
E foi com uma
nítida raiva que olhou para a velha cigana sentada a seu lado, toda de negro
profundo incluindo o lenço na cabeça, quando ela lhe deu uma cotovelada e lhe
disse, bem alto: “Dê lá o lugar ao velhote! Não vê que ele mal se aguenta de
pé?”
A resposta foi
atabalhoada, com um mal pronunciado “Não tinha visto”, mas lá se levantou.
Gesto inconsequente, que o lugar foi recusado com o argumento de que iria sair
na paragem seguinte e era mais fácil nem se sentar.
E aqueles olhos
lindos, bem como o seu rabo pesado e alma feia, voltaram a ocupar o banco, sem
se preocuparem com outros idosos, de cabelos alvos, que se apertavam e encostavam
uns aos outros no corredor apinhado.
Irritou-me! Mesmo!
Um olhar bonito, mas bonito mesmo como aquele, não desculpa o desprezo pelos
demais. Principalmente se ocupando um lugar reservado.
Aconteceu sairmos
na mesma paragem minutos depois. E eu, irritado que estava, achei que não podia
perder a ocasião.
Afivelei o meu
mais charmoso sorriso e, sacando da câmara do bolso, abordei-a.
“Desculpe. Posso
fotografar os seus olhos? Só os olhos!”
“Aaaah… Não,
obrigado. Estamos com pressa.” E seguiu com a talvez mãe, talvez tia.
Tal como eu.
Esforçando-me por manter o sorriso, insisti:
“É que, sabe,
gosto de fotografar olhos bonitos. E os seus são lindíssimos. Posso?”, ao mesmo
tempo que exibia a câmara.
Abrandou um pouco
o passo, olhou para mim e insistiu meio sorrindo:
“Obrigado, mas
estamos com pressa.”
“Mas é que gosto
mesmo de fotografar olhos bonitos. Bonitos como os seus. E gosto mais ainda
quando escondem uma alma negra e feia como a sua!”
Aqui estacaram
ambas e enfrentaram-me. E continuei, mantendo o sorriso mas esfriando o tom de
voz:
“Que bem vi como
fez o possível por não ver quem precisava do lugar sentado que ocupava. Tal
como vi o olhar que lançou à velha cigana quando ela a obrigou a levantar-se. E
agora, vendo-a a caminhar sã e escorreita como se espera das suas vinte pouco
primaveras, que não sei se invernos, ainda mais lhe reconheço a fealdade da sua
alma.
Ainda tentou
responder algo, mas não deixei, continuando:
“Mas, no fundo,
ainda bem que não deixa. Agora já não sei se quero ter algo seu, mesmo que uma
fotografia dos seus bonitos olhos. Sabe que mais? Boas festas, ainda que não
merecidas!”
Dei meia volta e
afastei-me.
É que, no fim de
contas, nem sei se ela merecia ou se entendeu o responso. E se eu continuasse,
talvez que viesse a recorrer a termos menos urbanos.
Quem vê caras – ou
olhos – não vê corações. E estes foram a alma negra deste natal.
By me
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