No meu hábito de
ir reparando no que me cerca e fazendo um eventual registo lúmico ou fonético,
muitas são as situações que merecem um reparo maior que um simples olhar.
E se a importância
de algumas se circunscreve ao tempo e lugar, outras há que, mesmo com essa
condicionante, me sobrevivem na memória nem sei bem porquê.
Esta, que faz anos
por estes dias, nunca me saiu da memória, mesmo que fugaz e inconsequente. Fica
o relato, tal como o contei e ilustrei então, creio que na mesma noite.
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Estranhei-a assim
que a vi.
Nada nela era
estranho ou peculiar. Nem o cabelo, nem as feições, nem o sobretudo, nem a
mala, nem o guarda-chuva, nem os sapatos… Nada nela estava fora do lugar.
Excepto o lugar!
Aquela mulher, dos
seus trintas bem medidos não pertencia ali.
Sapatos com salto
de agulha com bem 10cm, imaculadamente pretos e brilhantes; sobretudo de boa
fazenda cinzento escuro quase até ao tornozelo; mala de pele preta, fazendo
toillete com os sapatos; cabelo preto um pouco armado mas não muito; a face com
um toque, quase imperceptível de pintura; guarda-chuva de cabo longo e vareta
curtas, mais parecendo uma sombrinha que feito para chuva… tudo nele estava
equilibrado, justo, caro.
E era isso que era
estranho. Naquela estação de caminho de ferro suburbana, por volta das onze da
noite de quase fim de Dezembro, o seu olhar vagueava, meio perdido, pelos
indicadores dos comboios seguintes, olhando, quase sem ver, a meia-dúzia de
gente que, como eu, aguardava pelo transporte.
Deixei-a subir
para o cais. Não era nada comigo e, de uma forma ou de outra, parecia ter
encontrado a informação que procurava.
Passado um pouco
também eu subi. Haveria tempo de um cigarrito, de um olhar e ver as luzes, o
cais e as pessoas, quase sempre iguais. Talvez que nesta noite um pouco mais
vazio que o habitual. Que nunca sei o que há para contar, com aparo ou luz.
Quatro pessoas
aguardavam. Comigo cinco. E a senhora lá estava, sentada nos bancos de plástico
sobre a pedra fria, joelhos bem unidos, malinha sobre eles, sombrinha de chuva
ao lado.
Os anúncios
sonoros estariam avariados, que nada nos disseram da chegada da composição. Mas
ela viu-a, luzes fortes surgindo da curva. E levantou-se, aproximando-se da
beira do cais. Ansiosa, pareceu-me.
Mas a sua
inexperiência nestas lides ferroviárias e nesta linha em particular foi
evidente: O seu olhar franziu-se quando se apercebeu que o comboio se encostava
no outro cais. Olhou em redor, perturbada.
Primeiro para as
escadas. Suponho que pensando se teria tempo de trocar de cais. Não teria.
Depois para os quadros indicadores. Para um lado e para o outro, tentando
perceber o que se passava.
À distância
fiz-lhe um sorriso, talvez não perceptível na noite. E, com as mãos, um gesto
de “calma”. Continuou olhando, perturbada, até se ir sentar de novo, na mesma
posição.
Aproximei-me até
uma distância audível mas não intrusiva, e disse-lhe:
“O nosso vem a
seguir e pára aqui deste lado. Aquele segue mas fica a meio caminho.”
“Obrigada.” Disse
sorrindo. Era triste, o seu sorriso. Nem bonito nem feio: apenas triste. E
deixou-se ficar, já sem olhar para nada que não em frente.
Quatro minutos e
meio cigarro depois chegou o que queríamos: eu, ela e os talvez já quinze
demais passageiros que, entretanto, haviam subido ao cais. E todos embarcámos
com direito a lugar sentado. Àquela hora, naquele dia, dificilmente não os
haveria.
Quando
desembarquei, vinte minutos depois, ficou a bordo: sentada, direita e muito
composta, de olhar fixo bem para além da frente da composição. Nem bonita nem
feia, apenas triste, nos seus trintas e tais, por sob as suas roupas e
acessórios caros e ali invulgares.
Para onde iria e o
que a teria “obrigado” a viajar ali, então e assim, nos subúrbios? Em que teia
terá ficado presa?
By me
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