quinta-feira, 20 de março de 2014

Um olhar - Sofia



Foi ontem.
Estava sentado num café, já tinha degustado o bolo, já tinha fotografado o garfo, já tinha escrito umas tretas em torno disso mesmo e em frente ao computador, tentava que a rede funcionasse.
Bonitinha, sem ser uma estampa, aquela mocinha abordou-me.
Tentava ela vender-me uns relógios de pulso. Apesar de, logo no início, lhe ter dito que não tencionava comprar nada, ela continuou com a sua abordagem e pôs-me à frente a caixa que continha um deles.
Gostei do parlapié dela e dei-lhe algum do meu tempo. E também gostei dos seus olhos, que eram lindos.
Mas o gastar dez euros num relógio da treta, principalmente quando não me faz falta nenhuma, não me convenceram e disse-lho.
Sorriu e seguiu para outras mesas. E eu fiquei a observar a sua técnica de trabalho, que merecia ser vista. Incipiente, via-se que não tinha grande experiência nestas coisas de vendas na rua e nos cafés, tinha potencial e simpatia.
Quando acabou aquela mesa onde três idosas, naturalmente, não quiseram comprar o relógio nem o estojo de lápis e canetas infantis, e tornou a passar por mim, não resisti:
Interrompendo-lhe a marcha, convidei-a a sentar-se um nico, que não aceitou. E, com ela de pé e comigo sentado, propus-lhe um negócio alternativo: talvez eu lhe comprasse um relógio se ela me deixasse fotografar-lhe os olhos.
Ficou meia atrapalhada e eu ajudei, dizendo-lhe que seria lá fora, em acabando eu e ela o que estávamos a fazer. Anuiu.
Já no exterior, tive tempo de fumar todo um cigarrinho, enquanto ela fazia p’la vida lá dentro. E, quando saiu, conversámos.
Quis eu ver o relógio e confirmar preço: era um relógio por dez euros, com oferta de um segundo. Ainda pior do que eu tinha imaginado.
Tentei reajustar a coisa: eu dava-lhe cinco euros por um, sem oferta. Que não, disse, que aquilo não era dela e tinha que ser assim.
E fiquei com a sensação que a venda assim seria para que, em se avariando ao fim de duas semanas o primeiro, se pudesse usar o segundo por outro tanto. Não acedi.
Mas insisti na fotografia, usando agora eu as minhas técnicas e eventual charme para a convencer. Nada feito.
O negócio seria os relógios p’la fotografia, disse ela, e não havendo os primeiros não haveria o segundo.
E afastou-se, fazendo virar a cabeça a quem passava. Que, não sendo uma estampa, estava ataviada para o parecer. E tinha uns olhos lindos, daqueles que dizem mais do que a boca se atreve.
Quedei-me um pouco ali, no meio da rua, a pensar. Afinal, ainda bem que assim fora. Que não havia eu quebrado um hábito velho de anos: não pagar para fotografar.
Já tenho feito trocas: por conversa, por um cigarro pedido, até por um café oferecido. Agora envolvendo dinheiro… Isso nunca.
Porque, saiba-se, as coisas boas da vida fazem-se devagarinho e são de borla.

Quanto à fotografia, como se deduz não é a da mocinha de ontem.

É uma das primeiríssimas deste meu projecto, que celebrou há uns dias sete anos.

By me

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