quinta-feira, 14 de outubro de 2010

Ver de olhos vendados

Foi a melhor hora e meia que já passei na vida com a roupa em cima e os olhos vendados!

O relacionamento de um fotógrafo com cegos é, para mim, das coisas mais difíceis que se pode ter.
Se por um lado o nosso trabalho não lhes é acessível, por outro pedir a quem não vê para se deixar fotografar é-me particularmente difícil de conceber, já que eles não poderão aceder ao que lhes é feito.
Mas hoje, de olhos vendados, acedi ao mundo da fotografia, tal como se fora cego.
Trata-se de uma exposição, que lamentavelmente termina amanhã, de fotografias impressas em relevo para que os invisuais ou ambliopes a elas possam aceder e usufruir. São exibidas a par com as mesmas imagens em forma convencional, mas os visitantes são convidados a mergulhar nela sem as verem, pelo que sugerem que coloquem uma venda e que sejam acompanhados por uma guia do museu.
Sendo que não podemos ler o texto que acompanha as imagens nem sabemos interpretar a sua tradução em Braille, é essa guia nos lê a descrição da imagem. E nós, com base no que ouvimos e no que os nossos dedos sentem naquelas superfícies de relevo, tentamos “ver” as fotografias.
Impressionante a experiência!
Claro que a descrição que ouvimos, associada à nossa memória visual, nos ajuda a descodificar as sensações tácteis. Mas momentos houve em que, quer fosse pelo cansaço, quer fosse pela minha incapacidade de “ver” com os dedos, quer fosse pela complexidade do que ali estava representado, não consegui ter o mesmo “rendimento” que os invisuais que já lá tinham estado, pelo menos de acordo com o que me foi dito.
No final desta exposição impar, fui ainda guiado, sempre de olhos vendados, a uma outra, complementar.
Tratava-se de alguns objectos de bombeiros (extintores, capacetes, mangueiras, agulhetas, um carro de combate a incêndios) que ali estavam colocados para serem apreciados por cegos. Tactilmente, claro. Isto porque a exposição se encontra (até amanhã) no museu do Regimento de Sapadores Bombeiros de Lisboa. E eles não quiseram deixar de dar um contributo extra a esta iniciativa.
Repito: foi talvez a hora e meia mais intensa que vivi nos últimos anos, com a roupa em cima.
Esta exposição, que foi pouco divulgada como é costume neste país, deveria ser obrigatória para todos os que lidam com imagem ou aspiram a tal. Ou, melhor ainda, os que lidam ou estão a prender a lidar com o audiovisual. Saber como os cegos se relacionam com o mundo circundante e com o resultado do nosso trabalho garantidamente que nos ajudaria a fazê-lo melhor!

Para terminar, uma palavra de especial apreço à impagável funcionária municipal, destacada para este museu, pela inestimável ajuda que me deu neste meu mergulho no mundo da escuridão, bem como pela paciência que demonstrou para com este eterno curioso perguntador, ao acompanhar-me na visita ao resto do museu, desta feita vendo realmente o que ali se exibia.



(Propositadamente, este texto foi escrito à revelia do novo acordo ortográfico)

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