A bebedeira dele era grande. Tão grande quanto a negritude da sua pele, que contrastava com as cãs que lhe encimavam a cabeça.
Ela era mulata, vestida a preceito para a grande noite do ano, bem de acordo com a juventude que exibia.
Ele estava de cócoras ao lado do banco onde ela se sentava, solitária, no cais do caminho de ferro. Olhava ele para ela, com olhar ébrio e doce, dizendo-lhe não sei o quê. Mas não lhe colhia resposta que ela, muito hirta e olhando em frente, reagia com raros acenos de cabeça e monossílabos.
A coisa poderia descambar. Não seria a primeira vez, em circunstâncias e datas semelhantes. E, em redor, os grupos de dois a cinco ou seis pareciam ignorar por completo aquele monólogo. Ou tragédia.
Aproximei-me como se nada fosse comigo. Para um lado e para o outro, como se estivesse a matar o tempo à espera que chegasse o comboio que me levaria para o trabalho. E estava.
Por duas vezes parei bem em frente de ambos, tentando perceber se a coisa se agravava. E procurando como os meus olhos os dela. Que encontraram.
Sorri-lhe discreto, numa oferta muda de socorro eventual. Sorriu-me ela de volta, amareladamente, com um quase impercetível encolher de ombros. Enquanto o monólogo continuava, sem mais moléstias que as palavras. Que pareciam doces.
E acabou.
Levantou-se, pouco sólido nas pernas, bamboleando-se ora para perto ora para não tanto de onde ela estava. Aproximei-me dois pequenos passos, só de prevenção.
E o monólogo mudou!
Radicalmente!
O que quer que lhe ía na cabeça e saía pela boca passou para memórias e vivas. Pungentes. Que começaram a jorrar no negrume da ainda noite que competia com o tom da sua pele.
E falava de rajada. Sobre rajadas. E dramas. E bombardeamentos. E corpos desfeitos. E crianças com corpos desfeitos. E as lágrimas jorravam tal como as palavras, pouco coerentes mas sentidas como elas, já não falando para ela. Uma mulata, agora ainda mais pálida. Nem para mim, que mudo e tenso, tentava perceber se iria descambar e como.
O monólogo continuou, com o mesmo tema e renovadas lágrimas, já no comboio que, entretanto, chegara. Naquela carruagem ficámos apenas quatro, uma multidão pensando na hora e no dia: ela, bem na ponta e encolhida; dois bancos atrás ele , desfiando o seu rosário de sofrimento; eu, uma porta mais longe; o revisor na outra ponta, que talvez nem tenha dado por nada.
Na estação seguinte subiu um passageiro. Que parecia conhecê-lo e que saiu na seguinte com ele, amparando-o. Pela postura e tremer dos ombros, a memória que se queria esquecida continuava a retalhar-lhe a alma.
Ficou ela no seu canto, que saiu em Lisboa. Pela janela, ela lá fora, eu sentado dentro, trocámos um olhar e sorrisos. Amarelos, ambos.
Talvez que quando o meu turno de trabalho terminar acordem ambos.
Ela talvez só recordando uma passagem de ano. Uma boa recordação.
Ele talvez que a fazer de conta que não recorda o que viveu abaixo do equador, entre avanços e recuos e aldeias bombardeadas. Talvez assim se consiga manter até à próxima garrafa.
Nem sempre o primeiro de Janeiro é de boa memória.
By me
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