domingo, 2 de agosto de 2015

Amélie e a fotografia



Pese embora a enormidade de alternativas e prioridades, ontem decidi-me por uma repetição. E encostei-me a ver um filme que já conheço quase de cor e, para além do deixar levar-me pela sua qualidade cinematográfica e enredo, ir prestando de novo alguma atenção a alguns detalhes extra.
Estou em crer que a maioria – ou todos – o conhece: “O fabuloso destino de Amélie”.
É fácil deixarmo-nos levar pela história: a ingenuidade – ou talvez não – da principal personagem, o romance em forma de toca-e-foge, as suas vinganças suave e só um nico maldosa, os secretos prazeres pueris, todo aquele conjunto de personagens em torno do enredo principal, que lhe dão corpo, começando desde logo pelo “coro grego” na pele de um velho que não sai de casa e pelo marçano genial… Todo o filme nos enche a alma, com um final feliz, como não poderia deixar de ser.
No entanto, tem uma vertente adicional particularmente importante para os amantes de cinema em geral e para os amantes de fotografia em particular: a fotografia!
Desde logo a sua direcção. Tem certas subtilezas nos jogos de cor e luz das quais não nos apercebemos mas que são o complemento discreto da história e do local onde sucede. Não tanto nos contrastes do claro-escuro. O filme é suave e neste aspecto não nos “agride”. Mas antes na forma como as transições de um para outro acontecem (o gamma), que se em certos momentos é suave e discreto, noutras é bem mais intenso. Bem de acordo com a situação descrita ou as emoções narradas. Mesmo algumas dominantes cromáticas (do amarelado e quente ao azulado e frio) são bem suaves e discretas, mas perfeitas para os ambientes da acção. Com o acréscimo, quase imperceptível, de alguns momentos em que a luz assume uns tons esverdeados, aquela dominante que evitamos, não claramente explicados por luzes artificiais em cena, mas que complementam as emoções que assistimos.
Quanto à fotografia, no seu conceito convencional… uma delícia.
Começando por ser, ainda que como por acaso, o fio condutor de toda a história.
Depois porque refere dois tipos de fotografia, uma das quais já quase que é parte integrante da arqueologia fotográfica, a outra que para lá caminha, apesar de ainda em uso: o photomaton e a fotografia instantânea. Quem hoje usa de umas moedas para fazer fotografias de passe? Ou quem usa fotografia instantânea para enviar por correio? É interessante pensarmos que o filme, rodado em 2001, nos remete para uns muito poucos anos antes e como, quase que ainda ontem, tanto uma como outra forma de fotografar era ainda importante.
Em seguida, e igualmente notável, nos conta ou demonstra o como podemos imaginar ou fantasiar em torno de fotografias que não entendemos. Fotografias meramente factuais e sem um pingo de criatividade ou estética até às mais elaboradas e propositadas. É sabido que a importância de uma fotografia passa, e muito, pela interpretação que dela é feita. Autor e público. E é nesta vertente que o autor do filme brinca connosco, em duas linhas distintas, devagarinho e sem maldades. Mas deixando-nos a pensar no assunto. Para quem goste de pensar.
Mas igualmente o como um só objecto fotográfico pode dialogar connosco. É um momento fugaz na história, mas de relevo. Esta cena em particular até poderia não estar não estar no filme que não alteraria em nada o seu enredo ou desfecho. Mas estar faz dele, do filme, o importante que é. O como podemos interrogar uma fotografia e o como ela nos pode responder. Factualmente. Mesmo que uma fotografia absolutamente banal, sem mistério algum por si mesma.
Por fim, ou talvez não, um acto estranho: rasgar e destruir fotografias. Porque o podemos fazer e em que circunstâncias. O que queremos garantir com esse destruir de imagens. Destruir um momento feio ou incómodo? Garantir a privacidade? Apagar a memória (a nossa)? Esta questão, tão pertinente nos tempos que correm com a facilidade do “delete”, é aqui abordada de uma forma séria ainda que leve e original.

Recomendo que se veja ou reveja o filme.
Para quem o não conhece, deixe-se levar pela suavidade da história, pela beleza do cinema, por um filme que talvez nos ponha a pensar, apesar de não darmos por isso.
Para quem já o conhece, veja-se com olho crítico. Os detalhes cinematográficos e os detalhes de conteúdo fotográfico.
Tenho alguns filmes que considero verdadeiros hinos à fotografia, nos seus mais diversos aspectos.

Este é certamente um deles!

By me
Imagem: um frame do filme

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