domingo, 28 de dezembro de 2014

Um conto por dia





Não importa quem escreveu. Ou talvez importe, que quem sabe fazer deve ser referido. Mas como prefere a discrição, fica no anonimato.
Importa, sim, é que o escreveu e bem. Aqui fica:

UM CONTO POR DIA
Sentada ao canto da sala de espera, junto aos elevadores, aquela mulher olhava-nos nos olhos e dizia-nos coisas que só quem sabia ouvir o olhar de alguém entendia.
Devia andar por volta dos trinta anos de idade, mas parecia uma velhinha nas expressões do rosto e no tremer do corpo.
Bebericava um café que alguém lhe tinha dado e volta e meia levantava-se, aproximava-se de alguém com passos vacilantes e pedia vinte cêntimos para um café.
Se recebia a moeda, sorria. Se lhe era negado o pedido esboçava um esgar como resposta.
O corpo era franzino, diria até que demasiado magra.
Vestia umas calças de ganga cuja cor era indistinta, uma camisola que já conhecera melhores dias e um casaco de cor bege que tanto podia ser de pele de ovelha como da pele dela mesma porque quando se levantava e seguia nos seus passos vacilantes, segurava-o pela banda com as mãos magras como quem se agarra a uma bóia de salvação.
Era morena, rosto escorrido, olhos castanhos profundos de uma dor infinita, lábios grossos e escuros que ora sorriam ora choravam num esgar de dor e sofrida solidão.
Pendurada ao pescoço, uma chave pendia de uma fita cor de laranja que volta e meia verificava se ainda lá estava com as mãos finas, tremendo, tremendo como se fizesse um frio de tremer a alma.
Sempre que passava um médico ou enfermeiro levantava-se e ia pedir qualquer coisa.
Depois ficava parada no corredor, parada como quem espera algo ou alguém, com os olhos fixos no nada que era a sua vida.
Voltava à sala e lá ia pedindo a este ou àquele uma moeda de vinte cêntimos para um café e depois voltava a sentar-se no canto junto aos elevadores e ficava de olhar perdido no vazio do que era a sua vida.
De vez em quando chegava um auxiliar de enfermagem lá lhe trazia uma sanduíche e um chá ou café que ela recebia com um sorriso.
Agradecia e de seguida levantava-se e percorria a sala oferecendo a cada um o dom da partilha.
É servido? Perguntava-nos.
As respostas eram sempre negativas junto com os "muito obrigado" da boa educação de alguns ou então o silêncio na resposta dos que não tendo educação nenhuma a viam como alguém importuno, um ser a escorraçar por estar a mais.
Durante horas observei-a, naquele cenário de drama humano.
Da orelha direita escorrera-lhe sangue pelo rosto que entretanto já secara e nas roupas andrajosas havia ainda vestígios de sangue misturado com lama e agonias várias.
Na troca de olhares que fez comigo contou-me a sua pequena história.
Perdera tudo.
Primeiro perdera o respeito da família e dos amigos, depois perdera o respeito por ela mesma e finalmente perdera as ilusões de um dia voltar a ser gente e a ter uma vida digna.
Não comia nada havia dois dias e fora escorraçada do buraco que tinha sido a sua casa durante algumas semanas.
As chaves eram da porta de uma casa cuja morada já nem se lembrava mais e de onde tinha sido despejada.
Já conhecera vários buracos onde pernoitara e de onde era corrida ou pela polícia ou por moradores vizinhos ou ainda por outros companheiros de infortúnio que nisto de se viver na rua tem os seus quês e não há solidariedade que valha quando se luta por um buraco e por um bocado de pão.
Aquele corte na orelha era resultado das brigas pelos melhores buracos da cidade e ela já não tinha muitas forças para continuar a lutar.
Quando andava, vacilavam-lhe as pernas e tremia-lhe o corpo.
Quem olhava sem ver, dizia que era droga.
Mas quem olhasse e visse percebia que era fome.
Uma fome imensa que já lhe roubara as forças e lhe tirara o brilho dos olhos e emaciava-lhe a pele.
E voltava a pedir a moeda de vinte cêntimos para o café a quem passava ou a algum doente.
Chegada a hora do jantar, serviram sopa e sanduíches a quem esperava a sua vez nas urgências e ela não se fez rogada.
Comeu de novo, sentada no canto junto aos elevadores.
Comia como quem comesse a sua última refeição na vida, saboreando cada migalha como se fosse um repasto de ricos.
Tremiam-lhe as mãos, o corpo franzino gemia em silêncio...
A fome não saciada por uma simples refeição falava mais alto...
Apenas para quem sabia ouvir aquela história.
Para os outros, para quem não sabia ouvir, aquela mulher era uma chata de uma pedinte que ia para ali importunar os doentes e os seus acompanhantes.
E nalgumas bocas ouvi a frase "e assim se faz um ordenado ao fim do dia de pedinchice".
A pobreza incomoda muita gente porque lhes atira em pleno rosto a forma como se ganhou a riqueza que se ostenta.
É fácil criticar o mendigo quando se tem a mesa farta e uma casa onde morar.
Quando saí, já não a vi pela sala nem pelos corredores, mas sei que hoje pelo fim do dia, é ali que a podem encontrar.
Ou então estará nalgum prédio vazio dos muitos que existem a cair aos pedaços pela cidade.
Se for nalgum desses buracos, ela vai ter de lutar, se tiver forças, para poder dormir se conseguir resistir ao frio de mais um dia de uma vida com muitas histórias para contar a quem souber ouvir.


Imagem: by me

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