quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Intimidades





Bem espremido, bem espremido, a fé ou a religião explica-nos o que não entendemos, atenua os nossos receios e promete-nos a concretização dos nossos desejos.
Qualquer abordagem à história das religiões no-lo demonstra, se relacionarmos os seus dogmas e preceitos com as ciências e práticas civilizacionais correspondentes.
E é fácil de constatar nos dias que correm, com as transferências de interesse dos livros sagrados para as séries sobre ciência, os mitos urbanos e a história.
Bem como nas alterações de gente nos templos, nos centros comerciais, nas manifestações de rua, nos jogo de futebol e no euromilhões.
Promessas de felicidade no curto e no longo prazo, explicações daquilo de básico mas fundamental: de onde vimos e para onde vamos.
Claro que, e no meio das fés individuais, surgem as organizações. Que tratam de dar sentido e resposta aos medos e desejos, aproveitando para organizar a sociedade em função dos seus próprios medos e dogmas. Com hierarquias e lideranças bem definidas.

No meio de tudo isto, aproxima-se a passos largos uma das datas mais celebradas da humanidade. Com cariz religioso.
Mistério primeiro, explicado por divindades em seguida, depois por astronomia e ciência, apropriada ao longo dos séculos por esta ou aquela teologia, o evento existe e é tão incontornável quanto a existência da morte: o solstício.
De inverno para uns, de verão para outros, sempre foi constatado e celebrado, por si mesmo ou associado a outros eventos ou mitos defendidos ou explicados por teorias religiosas e suportadas por sacerdotes.
Se o medo da noite, do escuro, do desconhecido, é atávico, quanto maior for a noite maior a necessidade de o expurgar.
E se lhe juntarmos o rigor do ciclo temporal e a impossibilidade de o controlarmos, temos todos os ingredientes para que este dia ou noite seja especial, místico, celebrado num misto de receio do desconhecido e alegria porque ultrapassado.
As organizações religiosas, bem conhecedoras dos medos e alegrias, bom partido disso têm tirado, fazendo convergir sobre as suas teorias esses medos e alegrias, com todo o proveito social e material que conseguiram.

O “Big Bang” veio substituir, para muitos, o convencional “Faça-se luz … foi o primeiro dia.” A literacia, a tecnologia, os Big Brother, vieram substituir a omnipresença, omnipotência e omnisciência clássicos. As próprias normas teológicas se vão alterando, adaptando-se às realidades quotidianas, suavizando-se umas, extremando-se outras, alterando mesmo os canais de comunicação com as divindades.
Mas aquilo que a evolução social e científica não explica é o que estaria antes do Big Bang nem atenua o medo natural do futuro e da morte.
E é a isto que todas as teorias religiosas ainda se agarram e disto sobrevivem: o que está para além do tempo (que não controlamos), o que está para além do universo (que não conhecemos) e o que está para além da morte (que tememos). E sobre isto todos, com maior ou menor dose de racionalidade ou de misticismo, se debruçaram e debruçam. Todos os dias, de quando em vez, quatro dias por ano.

Por mim, agnóstico convicto, pouco me convencem as teorias ditas divinas que suportam ambições de poder ilimitadas.
Tenho a certeza da efemeridade da matéria de que sou feito, tal como tenho a certeza de não atingir a enormidade do espaço/tempo em que existimos.
Mas também julgo ter a certeza da continuidade desse espaço/tempo, baseada nas evidências que vão para além da espécie humana entre as demais espécies vivas conhecidas.
E no meio das certezas, incertezas e ignorâncias, sei que fazemos parte de uma espiral evolutiva, na qual somos um detalhe abaixo de ínfimo.
A única celebração que faço, no meu íntimo e bem para além da insignificância que somos, é a do completar dos anéis espiralados em que existimos e que não controlamos. Uma celebração talvez equivalente à que um grão de areia fará na praia a cada sete ondas ou a cada maré.

E, saiba-se, um grão de areia dura muito mais do que eu mesmo ou qualquer um dos que me lêem. 

By me

Sem comentários: