quarta-feira, 19 de novembro de 2014

O sorriso



De quando em vez cruzamo-nos.

Quando primeiro travámos conhecimento, ainda nem tinha idade para votar. Aquando das minhas larachas em troca de uma bica e de um bolo, conseguia ver um sorriso bonito e tímido, de quem, naquela idade é forçado a repartir o seu tempo entre as chávenas e pires a meias com a família e os bancos da escola.
Porque esta é das outras formas de nos cruzarmos. Na rua, num sentido ou no outro, está de regresso ou a caminho da escola aqui a menos de 1km de casa. Porque mora na minha rua.
Também nos encontramos, volta e meia, quando arrasta atrás de si um saco quase tão grande quanto seu corpo franzino, com os detritos do café onde trabalha. Quando a veja assim, pergunto-me sempre sobre quem arrasta quem.
Há algum tempo fui-me apercebendo de mudanças: o sorriso passou de tímido e simpático para simpático e triste; as pernas começaram a inchar; as costas a dobrar e a barriga a crescer.
Estava grávida!
Tão nova e já assim, usando o seu tempo livre da escola a servir bicas e refeições, e já grávida!
A última vez que a tinha visto fora há pouco mais de um mês. Arrastava o saco do lixo, quase maior que ela e a sua barriga enorme.
A questão não é comigo, mas incomodou-me. Fechada a tempo inteiro ora nas aulas ora no trabalho, sem tempo para gozar a sua juventude, e já não a vai poder gozar por completo. Sim, que um filho não pede muito, apenas 24 horas por dia…
Deu há luz há cerca de duas semanas. Uma rapariga, pelo que percebi através das fofoquices do outro café onde vou regularmente.
Hoje tornei a vê-la.
Do sorriso bonito e tímido, que se tinha transformado em simpático e triste, já só resta o triste. O sorriso foi-se! Estava a arrastar o saco do lixo, maior que o seu corpo franzino e a sua barriga que já não tem. Menos de duas semanas depois de ter tido um filho. Numa idade em que o sol deveria brilhar, pelo menos, dia sim, dia não.

Senti-me envergonhado. Envergonhado por pertencer a uma sociedade, a um bairro, a uma rua onde isto acontece e não posso fazer coisa alguma. Mesmo que queira, que a maioria nem quer.
Espero poder ter oportunidade de lhe tornar a dizer uma laracha das minhas e provocar um sorriso. Ainda que tímido ou triste, mas um sorriso.

Ao menos que possa ter um.

By me

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