sexta-feira, 7 de novembro de 2014

O sol e a peneira



Usamos a escrita como forma de comunicação. Lidamos com os seus códigos base (letras) para formar códigos mais elaborados (palavras) que se agrupam em códigos mais complexos (frases). A estas, mais que simples referências a objectos, correspondem ideias, sentimentos, abstracções, que podem ou não ter correspondência directa entre o que pensou quem escreveu e o que pensa quem lê.
Estas frases agrupam-se também segundo códigos: períodos, capítulos, páginas, livros… a forma como as ideias escritas se espraiam nas superfícies de suporte também são códigos.
Algumas dessas ideias estão expressas de forma escorreita, clara e inequívoca. A maioria dos romances assim o é, tal como a maioria dos textos jornalísticos.
Mas é certo que nem todos os que escrevem usam estes códigos de forma banal e simples. A poesia é uma dessas formas mais elaborada, em que a gestão do espaço leva a criar ritmo na leitura, forçando a sentimentos para além dos das palavras.
Outro bom exemplo é a escrita de Saramago. A maior parte dela. Ideias aparentemente confusas, que se entrecruzam sem nexo aparente. Aparente, já que a lógica dos códigos está lá. Uma outra, mas está lá. Implica, para quem o lê, um entrar nessa lógica, um percebê-la deixando de parte as nossas próprias lógicas e convenções.
Indo bem mais longe, Stau Monteiro foi um desses mestres, no ignorar as lógicas dos códigos da escrita. Ou, se preferirem, em usar a sua ausência para criar várias leituras ou interpretações diferentes. Procurem-se as “Crónicas da Guidinha” para o perceberem, com textos de página inteira sem um ponto, vírgula ou parágrafo. Tentar ler aqueles textos em voz alta implica o morrer de falta de ar!

Na imagem fotográfica acontece exactamente o mesmo. Temos códigos que usamos, consciente ou inconscientemente, para comunicar.
Desde logo a luz.
O termos algo mais ou menos iluminado, os contrastes que criamos em função dos interesses que queremos criar, do que queremos que seja evidente ou mais escondido…
A perspectiva idem.
Colocar algo em primeiro plano, podendo não o estar, o definir linhas reais ou imaginárias que evidenciam ou disfarçam elementos, o jogar com tamanhos aparentes…
De igual forma, o jogo de cores.
Ao colocarmos algo em frente a uma outra cor, quer contraste quer se assemelhe, estamos a dar força ou a disfarçar uma delas, a criar o sujeito, o predicado e o complemento.
Tal e qual como na escrita.

Mas tal como na escrita, podemos chamar de analfabetos aqueles que se confrontam com o que fazemos. Ou de estúpidos.
Quando sublinhamos por inteiro toda uma página, quando necessitamos de escrever em maiúsculas toda uma frase, quando deixamos uma palavra solitária no meio de uma página ou mesmo de um livro, estamos a dizer a quem lê que só aquilo é importante e que tudo o resto é inútil, inconsequente e que a isso não devemos prestar atenção.
A menos que… A menos essa evidência, esse anular tudo o resto seja um estilo, uma técnica consciente e não um recurso por falta de recursos.
Na imagem fotográfica passa-se o mesmo.
Quando me mostram uma imagem, originalmente feita em cores, mas quase toda ela transformada em monocromática com excepção de um pedaço dela, fico sempre com a certeza (ou quase sempre) que esta técnica sucede porque a gestão de espaço, a utilização da luz, os jogos de perspectiva não foram suficientemente bons aquando da tomada de vista para evidenciar aquilo que interessava.
É uma técnica que pode ter excelentes resultados. De comunicação e estéticos.
Mas, as mais das vezes, mais não é que tapar o sol com a peneira.
Dúvidas?
Peguem na esmagadora maioria das fotografias que usam este recurso. Retirem-lhe toda a informação cromática, transformando-a naquilo que costumamos chamar de “preto e branco”. E verifiquem se aquilo que dantes era evidente, que não podia deixar de ser visto, ainda o é. Verifiquem se o centro de interesse é o mesmo. Ou mesmo se há um centro de interesse.

Todas as técnicas de comunicação são boas para serem usadas. Faz parte da diversão o usá-las na criação, faz parte da diversão o constatá-las na leitura.
Mas, por favor, o sol com a peneira é que não!
Usem-nas porque é assim que querem que seja visto, decisão usada em todo o processo criativo, e não como forma de disfarçar incapacidades ou erros.


By me

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