Procuro manter um
hábito de anos: Um textinho e uma fotografia a abrir o dia.
No entanto há que
convir: nem todos os dias se tem criatividade para tal, logo às quatro da
madrugada.
Assim, é frequente
recorrer ao arquivo para essa primeira publicação diária. E quanto mais recuado
melhor, para evitar repetições próximas.
Desta feita fui
dar com um conto de Márcia Frazão, que a própria me enviou há mais de uma mão-cheia
de anos.
Depois de o ter
lido três vezes (que uma só soube-me a pouco, tal como os bolos), foi o tempo
de ir fazer a correr uma fotografia ilustrativa.
Aqui os deixo, com
a devida vénia à autora da prosa, que tem blog, face e etc. Procurem-na que
vale a pena:
“Kafka e a nossa
metamorfose
Quando Gregório
Silva despertou numa certa manhã em que ouviu, no rádio, notícias sobre um castelo
fincado no sertão mineiro, viu surgir o primeiro sinal da metamorfose: duas
estúpidas anteninhas bem no alto da cabeça que o obrigaram a ir para o
escritório com um gorro mais estúpido ainda. Se tivesse lido Kafka, ficaria em
casa, daria uma desculpa ao chefe da repartição e não se prestaria a tal
vexame. Mas como não lera e ainda por cima era só mais um brasileiro aterrado
com o desemprego, preferiu pagar o mico e garantir o parco salário.
Se a pressa de
chegar ao trabalho não lhe fosse prioridade máxima (os tempos eram duros e, por
qualquer bobeira, o sujeito dançava), Gregório veria que as ruas estavam
apinhadas de gorros. Mas o medo do desemprego o impedia até de olhar para os
lados.
Assim, com os
olhos voltados para uma frente que corria o risco de desaparecer a qualquer
momento, Gregório foi vivendo a vida com a cabeça enfiada num estúpido gorro.
Até que lá pelos meados do ano, quando o escalão maior do Estado decidia
expulsões ingratas, legalizações transgênicas, reformas nebulosas e construção
de mais uma usina nuclear, surgiu o segundo sinal da metamorfose: duas asas
asquerosamente cascudas que o obrigaram a tirar do armário o velho fraque do
casamento e com ele ir vestido para o trabalho. Se Gregório tivesse lido Kafka,
teria a certeza de que estava se transformando em barata. Mas como o seu tempo
era curto para as leituras e já deixara de ser dinheiro há muito tempo,
preferiu seguir a sua vidinha de dívidas e prestações, achando que as asas não
passavam de um mero desvio da coluna.
Ao contrário do
herói de Kafka, Gregório não podia se dar ao luxo de se trancar num quarto e
virar barata. O antigo chefe já havia dançado e entrara no seu lugar a esposa
de um vereador, amigo do diretor. E foi exatamente a nomeação da tal mulher que
provocou mais uma etapa da sua metamorfose: duas patas cabeludas substituíram
os seus braços. Como havia sido transferido do almoxarifado (a nova chefe, num
acesso de faxinice aguda, eliminara todo o estoque de medicamentos), Gregório
logo se adaptou às patas.
Acostumado com a
naturalidade brasileira das adaptações, Gregório foi seguindo a vida aos
trancos e barrancos. Às vezes, chegava até a agradecer a metamorfose. Sem
precisar gastar dinheiro com nenhuma cirurgia, seu estômago encolhera e a falta
de alimento na geladeira já não o assustava mais. O gorro estúpido já não lhe
causava constrangimento, pois da noite para o dia virara moda.
Porém, como
adaptação de classe média dura pouco, nesta semana, ao ver na TV as gastanças
do senado com diretores de garagem, diretores de atas, diretores de cafezinho e
diretores de adoçante e de venezianas, Gregório se viu totalmente transformado
em barata. Olhou para os lados e viu a mulher, os filhos e a empregada
arrastando-se pelos cômodos da casa, exatamente como ele. Arrastou-se até a
janela e viu a rua apinhada de insetos. E quando já começava a tecer motivos
para mais uma adaptação, viu na TV uma cena dantesca: os parlamentares haviam
se transformado em gigantescas latas de inseticida.
Marcia Frazão
By me
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