terça-feira, 15 de março de 2016

A memória fotográfica



Esta fotografia foi feita em ’82, talvez em ’83, não garanto. À época, não ficava incluso nas fotografias a data e hora. E os ficheiros eram em papel.
Mas é curioso o que recordo dela, apesar de não haver memória digital.
Recordo de ter sido feita em casa da família, usando como estúdio a sala comum e já tarde na noite.
Recordo ter usado a então recém comprada Linhoff Kardan Collor 9x12, adquirida em enésima mão para entrar no mundo da fotografia publicitária. Uma objectiva Schneider de 150mm, f/5,6 e dois chassis duplos para a película, era tudo o que vinha com ela. Mas quanto bastava.
Recordo que usei lâmpadas de 200w e 500w, montadas em casquilhos de loiças que, por sua vez, estavam fixados com grosso arame e braçadeiras de mangueira em varões de cortinas de casa de banho, extensíveis e colocados na vertical. Não havia dinheiro mas havia uma forte vontade de fazer, o que conduzia ao improviso.
Recordo de ter usado para medição de luz um Seconic de quadro e ponteiro e um spotmeter Pentax digital.
Recordo ter usado película rígida Agfa, balanceada para luz artificial de 3200K e de sensibilidade 160 ASA.
Recordo ter feito os cubos de gelo ao lume. Sim, não é uma gralha esta afirmação. Foram feitos num tacho, a partir de gelatina e água e formatados no congelador nas respectivas formas. Deste modo, mantinham-se inalterados apesar do calor da iluminação.
Recordo ter tirado o fundo da garrafa com azeite e um ferro em brasa. Tarefa delicada mas necessária, se queria garantir a posição dela no enquadramento ao mesmo tempo que controlava a quantidade de líquido que sairia pelo gargalo.
Recordo ter esta imagem sido feita como resultado de um desafio entre compinchas de fotografia, em que o tema era “publicidade a bebidas mas sem marcas evidentes”.
Ainda possuo, e para além da memória, os copos, a bandeja e os livros. E os fotómetros, claro. Suponho que duas dessas lâmpadas também. A câmara foi-se, com muita pena minha, mas a vida assim o impôs. Já a fotografia original sei que a tenho, mas não sei com rigor onde.

No entanto, e no meio de tudo isto e bem mais importante que recordar ou não, que possuir ou não, é o ter feito.
É ter aceite um desafio, que sabíamos complexo, ter pensado nele um bom pedaço, ter preparado a coisa com antecipação e cuidado e ter realizado aquilo a que me tinha proposto. Mesmo que num salutar desafio entre compinchas, sem vencidos nem vencedores.
Tínhamos nós a vantagem sobre os dias de hoje de estes desafios com este tipo de tecnologia serem morosos, trabalhosos e dispendiosos. O que nos levava a ter bastantes certezas antes de premir o botão do obturador.
Disse-me uma vez um arquitecto que um projecto de um edifício deve demorar a ser planeado pelo menos o dobro do tempo do que leva a ser construído.

Nunca planeei ou concebi um prédio, mas o conceito aplica-se igualmente à fotografia.

By me 

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