quarta-feira, 20 de agosto de 2014

A máquina fotográfica



É na câmara escura dos teus olhos
que se revela a água
água imagem
água nítida e fixa
água paisagem
boa nariz cabelos e cintura
terra sem nome
rosto sem figura
água móvel nos rios
parada nos retratos
água escorrida e pura
água viagem trânsito hiato.
Chego de longe. Venho em férias. Estou cansado.
Já suei o suor de oito séculos de mar
o tempo de onze meses de ordenado;
por isso, meu amor, viajo a nado
não por ser português mal empregado
mas por sofrer dos pés
e estar desidratado.
Chego. Mudo de fato. Calço a idade
que melhor quadra à minha solidão
e saio a procurar-te na cidade
contrastada violenta negativa
tu única sombra murmurada
única rua mal iluminada
única imagem desfocada e viva.
Moras aonde eu sei.
É na distância
onde chego de táxi.
Sou turista
com trinta e seis hipóteses no rolo;
venho ao teu miradoiro ver a vista
trago a minha tristeza a tiracolo.
Enquadro-te regulo-te disparo-te
revelo-te retoco-te repito-te
compro um frasco de tédio e um aparo
nas tuas costas ponho uma estampilha
e escrevo aos meus amigos que estão longe
charmant pays
                                        the sun is shining
                                                                                     love.
Emendo-te  rasuro-te  preencho-te
assino-te  destino-te  comando-te
és o lugar concreto onde procuro
a noite de passagem  o abrigo seguro
a hora de acordar que se diz ao porteiro
o tempo que não segue  o tempo em que não duro
senão um dia inteiro.
Invento-te  desbravo-te  desvendo-te
surges letra por letra, película sonora,
do sendo à vogal  do tema à consoante
sem presença no espaço  sem diferença na hora.
És a rota da Índia  o sarcasmo do vento
a cãibra do gajeiro  o erro do sextante
o acaso  a maré  o mapa a descoberta
dum novo continente itinerante.


Ary dos Santos

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