terça-feira, 1 de outubro de 2013

Porque tinha chovido



Como eu, ela esperava pela hora do comboio partir. E ainda faltavam bem uns vinte minutos.
Como eu, ela fumava um cigarrito.
Mas, ao contrário de mim, tinha decidido sentar-se. E foi isso que me fez meter conversa.
Que, no lugar de usar os bancos da estação (que estavam molhados), sentara-se no degrau (há quem lhe chame de “estribo”) da carruagem onde entraria mais tarde.
Não resisti e meti conversa. Há muito, mas muito mesmo que não via gente assim sentada. Excepto a malta à espera do primeiro da manhã, depois de uma noite bem vivida, o estribo foi usado por mim, e por muitos outros, em locais de resguardo de composições. E muitos dos que os usavam não seriam exactamente aquilo a que se costuma chamar de “boas companhias”. Há muito que não via disto, assim.
E disse-lho. E disse-me ela que estava muito cansada depois de um dia longo de trabalho, num centro comercial mesmo ali ao lado.
Foi uma conversa gira, entre um cota e alguém que fez questão de dizer, por duas vezes naqueles talvez 45 minutos, que está quase a fazer vinte anos.
Falou-se de estudos (os falhanço e os sonhos) falou-se de trabalho, falou-se de livros e de filmes (recomendei-lhe um ou dois), falou-se de migração e de como ela gostaria de ir para a Austrália, onde já tinha estado em tempos, falou-se de casas para alugar…
Falou-se várias coisas, eu a dar corda e uns trocos, ela a falar de si e dos seus projectos com o namorado.
A surpresa veio a troco já nem sei de quê. De súbito perguntou-me:
“Foi votar, ontem? Ui! Houve tantos que não foram…!”
A surpresa não foi na pergunta, se bem que invulgar. A surpresa foi o tom de extremo orgulho em ela mesma o ter feito. E, pela idade e cronologia dos últimos actos eleitorais, ter sido a primeira vez.
Foi bonito de ver, foi bonito de ouvir, foi bonito de o sentir.
Claro que lhe disse que sim, apesar do que trago na lapela. E, não sabendo ela o que era, lá lhe anotei numa folha de papel o que procurar na net a esse respeito. “Ah, isto!” disse quando leu. “Acho que falámos disto em História, no secundário.”
Ganhei a noite por a saber interventiva e ganhei a noite porque me fez recordar o meu próprio orgulho de ter votado pela primeira vez, faz já muitos anos.

A fotografia? Claro que não é a dela. Pedir-lhe para fazer uma fotografia teria estragado, por completo, aquela espontaneidade de dois estranhos que conversam, sabendo que será provável que não se tornem a encontrar.

Optei, assim, pelo que sobrou de uma poça d’água ao desembarcar na minha própria estação. Vestígios de um aguaceiro que, se não tivesse acontecido, nunca teria proporcionado esta conversa.

By me 

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