quarta-feira, 30 de outubro de 2013

Batata-frita



A história tem já uns quantos de anos, mas hoje voltou-me à memória.
Num centro comercial sou abordado por uma senhora. Já velhinha, parecendo-o ainda mais pela sua pequena estatura, parou, olhou-me de frente e perguntou:
“É pintor?”
Fiquei meio à toa. Nada em mim o poderia indicar. Talvez, mas só talvez, o chapéu de aba bem larga que usava na época, junto com o meu sempiterno colete e o saco fotográfico às costas. E respondi-lhe:
“Não, minha senhora. Não o sou.”
“Ah! Então é escritor.” Afirmou convicta.
“Também não. Mas sou fotógrafo, se isso ajuda.”
“Pois, eu sabia. É um artista.”
“Nem tanto, nem tanto”, tentei dizer-lhe, mas sem sucesso, que já se afastava no seu passo miudinho.
E, como estava de costas, não o posso assegurar, mas creio que levava um sorriso de satisfação por ter acertado.

E é este o mal dos seres humanos: para tudo têm que encontrar uma classificação, um rótulo, um compartimento mental onde encaixar o que vêem e conhecem. E pouco importa o rigor da relação entre denominação e realidade: desde que classificado, é quanto basta.
E, por tudo quanto é lado, os rótulos imperam: ele é o –ista, ele é o –crata, ele é o –eiro… desde que haja um sufixo é quanto basta.
Conheço boa gente que, assumindo-se de direita, tem atitudes bem mais de esquerda que alguns esquerdista que também conheço. E alguns destes que, dizendo-se de esquerda, fazem inveja a alguns direitistas de renome.
Por mim, os rótulos que me possam por pouco me importam. Intitulo-me de Acráta, mas podem chamar-me de batata-frita. Não serão eles, os rótulos, que me farão desviar do que penso e sou.
E, sendo que sou “do contra”, quanto mais teimarem em classificar-me, em encaixar-me num qualquer conceito pré-definido, mais gozo tenho em defraudar as expectativas.
A factura é pesada, por vezes. Desde a não promoção por não ir exercer o meu ofício, à borla, para um partido, até aos castigos não formais por ser objector de consciência perante imoralidades ou inverdades.

Os tempos que se avizinham são bem mais sombrios que o que gostaríamos. E os primeiros a tombar serão, certamente, aqueles que não encaixam em classificações e para com os quais é bem mais difícil de lidar. Que em não havendo rótulo, não há antídoto conhecido que não o nó Górdio.

Precavendo-me, mesmo que tarde, de ora avante serei um batata-frita!

By me

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