quinta-feira, 8 de agosto de 2013

Estereotipo arcaico



Das velhas ideias formatadas do início da fotografia uma há que sobrevive nas mentes de fotógrafos e fotografados: a fotografia é um momento único.
Claro que cada instante é único e irrepetível. A ciência e a filosofia atestam-no e pouco se alguma coisa se pode dizer em contrário.
E a fotografia, cada fotografia, regista um único momento, uma fracção do continuo espaço/tempo.
Donde, cientifica e filosoficamente, cada fotografia é única e irrepetível, mesmo que se trate de natureza morta, em estúdio e com a mesma luz. É única.
Mas o que me leva a concluir que o conceito de “imagem única” está enraizado muito para além disso é outro aspecto.
A fotografia enquanto registo único já coisa rara de acontecer. Ainda não há muito tempo, ir ao fotógrafo era algo de quase solene. E mesmo o fazer de fotografias para documentos corriqueiros, como títulos de transporte ou bilhete de identidade, era algo que sucedia de quando em vez.
Nessa raridade da função, todos faziam questão de serem retratados bem arranjados e com um sorriso. Queriam-no os fotografados, sugeriam-nos os retratistas. Queria-se deixar uma imagem de felicidade, de satisfação, de estar de bem com o mundo. E que melhor forma para isso, mesmo que num vulgar documento de identificação, que um sorriso?
Mesmo hoje, com a mais que banalização da fotografia mais ou menos a sério, mais ocasional ou mais de circunstância, o sentir-se a objectiva voltada para nos provoca o sorrirmos. Instintivamente. Mesmo que a vida de pouco nos sorria.
Um exemplo típico da obrigatoriedade de um sorriso na fotografia é a estorieta, velha de muitos anos:

“- Sorria, dizia o fotógrafo.
E ele, sentado no banco e sob as luzes, nada.
- Sorria, insistia o profissional.
Nada.
- Oh homem: sorria para a fotografia!
- Não posso, retorquiu o outro.
- Como não?
- Esta fotografia é para um documento profissional e eu sou agente funerário.”

Para além de uma simples anedota, veja-se como gente conhecida, do nosso círculo mais próximo ou mesmo das revistas cor-de-rosa, exibe as suas próprias fotografias, de festas ou não: sempre a sorrir, muitas e muitas vezes com um sorriso forçado, ensaiado diria eu, tão artificial na expressão facial como na corporal que já nada conta do que possa estar na alma e que, eventualmente, se possa traduzir num sorriso.
Esta atitude de “um sorriso p’ra fotografia” é um estereotipo arcaico que impõe o conceito de que cada fotografia é um momento único e para mais tarde recordar. E, mesmo que o seja, não conheço ninguém que, em todos os minutos da sua vida, estivesse a sorrir.
Para os que dizem que uma fotografia vale mais que mil palavras e que a fotografia não mente, sugiro que revejam os vossos conceitos.


By me

1 comentário:

Anónimo disse...

Este "retrato" remete-me para uns quantos que já vi de Dali.
Fiquei fascinado quando contactei com algum do trabalho dele.
Cada vez mais é um gosto ver o que me espera quando por aqui passo!

Abraço, António Samagaio