quinta-feira, 30 de setembro de 2021

Num Setembro, há uns anos




Por vezes a fotografia vale por si mesma, sem mais explicações. Outras, há que contextualizar o fotografado para que faça algum sentido. Outras ainda será um texto ou uma ideia que necessita de uma ilustração. E é frequente considerar-se a ilustração fotográfica um género menor.

Recordo a dificuldade em ilustrar este texto, cujo rascunho foi redigido num caderninho numa mesa de café. Encontrar uma imagem, passível de executar ali, sem mais que o que tinha comigo, entre objectos, equipamento e luz. E que, de algum modo, correspondesse ao relatado, factual e subjectivamente. Foi o que me saiu.

 

Num Setembro, há uns anos

A noite fora curta. Muito curta.

Somado a isso, um dia passado em andanças que me fizeram recordar outros tempos, que tinha prometido não voltarem. Mas as promessas foram criadas para se quebrarem.

Em cima de tudo isto, um almoço particularmente tardio, uma tarde de muito calor e o suave embalar do comboio, acabaram com as minhas resistências: quando dei por mim, tinha acabado de passar a minha estação.

Saí na seguinte e, no largo que lhe é fronteiro, parei um pouco. À sombra. E fiquei, sem pressas, a ver o que acontecia no lago da estação de um bairro suburbano num fim de tarde domingueira que, sendo Setembro, bem que podia ser Agosto.

Uma moça, em idade de terceiro ciclo escolar, e com trajes a condizer, esperava impacientemente por algo ou alguém. Não era da zona, que foi confirmar com funcionários dos autocarros locais se estaria onde pensava. P’lo semblante, pareceu-me que sim.

Eis que pára um carro, com um rapazola já bem crescidote ao volante e que, p’la forma como abordou os incomuns sentidos rodoviários, também não seria dali.

Toca o telemóvel dela, que atende: era ele. E não se conheciam.

Aguardava ela, e trazia ele, um manual escolar. Que ela reconheceu de imediato com um “É mesmo este, obrigado!”

Volta ele p’ro carro e ela p’ra carrinha de onde saíra, onde uma mulher, ao volante, aguardava com mais duas garotas atrás.

Seguiram os dois veículos e eu fiquei a vê-los afastarem-se. E pensando com os meus botões que aquilo terá sido uma cedência gratuita de manuais usados. É bom ver tal coisa ao vivo.

E estou eu a pensar e a sorrir sobre isto, quando sou abordado.

Um velhote, andrajoso e com um olho inchado e fechado, vinha pedir-me um cigarro. “Mas só se puder ser e não lhe fizer falta”, disse-me.

“Claro!” e tirei a cigarreira do bolso, abrindo-a e estendendo-lha. “Sirva-se”.

Olhou para ela, olhou para a sua mão suja e calejada e deixou-me de boca aberta: “Se não se importa, tire o senhor.”

Dei-lhe quatro.

 

Por vezes, compensa adormecer no comboio!

 

By me

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