Não gostaria de
parecer erudito ou mesmo especialista em literatura. Não o sou de forma alguma.
Mas há algo que me
faz espécie: A esmagadora maioria daqueles com quem falo sobre o assunto
dizem-me desconhecer aquilo a que se costuma chamar “Todo o mundo e ninguém”,
parte do Auto da Lusitânia de Gil Vicente.
E espanta-me isto
porque é algo que julgo conhecer desde sempre, que é como quem diz, desde os
bancos da escola.
Na minha mente,
este pedaço sempre terá feito parte dos conteúdos dos liceus e espanta-me que
tantos, de idades tão díspares, não o conheçam ou mesmo reconheçam.
Para obstar aos
que não conhecem, aqui deixo o texto em causa, ilustrado com um retrato do
autor que fui “palmar” algures na net.
Entra Todo o
Mundo, rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que perdeu; e logo
após, um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém e diz:
Ninguém: Que andas
tu aí buscando?
Todo o Mundo: Mil
cousas ando a buscar:
delas não posso achar,
porém ando porfiando
por quão bom é
porfiar.
Ninguém: Como hás
nome, cavaleiro?
Todo o Mundo: Eu
hei nome Todo o Mundo
e meu tempo todo
inteiro
sempre é buscar
dinheiro
e sempre nisto me fundo.
Ninguém: Eu hei
nome Ninguém,
e busco a consciência.
Belzebu: Esta é
boa experiência:
Dinato, escreve isto bem.
Dinato: Que
escreverei, companheiro?
Belzebu: Que
Ninguém busca consciência.
e Todo o Mundo dinheiro.
Ninguém: E agora
que buscas lá?
Todo o Mundo:
Busco honra muito grande.
Ninguém: E eu
virtude, que Deus mande
que tope com ela já.
Belzebu: Outra
adição nos acude:
escreve logo aí, a fundo,
que busca honra Todo o Mundo
e Ninguém busca virtude.
Ninguém: Buscas
outro mor bem qu'esse?
Todo o Mundo:
Busco mais quem me louvasse
tudo quanto eu
fizesse.
Ninguém: E eu quem
me repreendesse
em cada cousa que errasse.
Belzebu: Escreve
mais.
Dinato: Que tens
sabido?
Belzebu: Que quer
em extremo grado
Todo o Mundo ser louvado,
e Ninguém ser repreendido.
Ninguém: Buscas
mais, amigo meu?
Todo o Mundo:
Busco a vida a quem ma dê.
Ninguém: A vida
não sei que é,
a morte conheço eu.
Belzebu: Escreve
lá outra sorte.
Dinato: Que sorte?
Belzebu: Muito
garrida:
Todo o Mundo busca a vida
e Ninguém conhece a morte.
Todo o Mundo: E
mais queria o paraíso,
sem mo Ninguém
estorvar.
Ninguém: E eu
ponho-me a pagar
quanto devo para isso.
Belzebu: Escreve
com muito aviso.
Dinato: Que
escreverei?
Belzebu: Escreve
que Todo o Mundo quer paraíso
e Ninguém paga o que deve.
Todo o Mundo:
Folgo muito d'enganar,
e mentir nasceu
comigo.
Ninguém: Eu sempre
verdade digo
sem nunca me desviar.
Belzebu: Ora
escreve lá, compadre,
não sejas tu preguiçoso.
Dinato: Quê?
Belzebu: Que Todo
o Mundo é mentiroso,
E Ninguém diz a verdade.
Ninguém: Que mais
buscas?
Todo o Mundo:
Lisonjear.
Ninguém: Eu sou
todo desengano.
Belzebu: Escreve,
ande lá, mano.
Dinato: Que me
mandas assentar?
Belzebu: Põe aí
mui declarado,
não te fique no tinteiro:
Todo o Mundo é lisonjeiro,
e Ninguém desenganado.
.
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