segunda-feira, 21 de agosto de 2017

O ceptro do cobrador



Era um símbolo da tirania! Quando o trinca-bilhetes, agora chamado de pica, se aproximava, todos sacavam do porta-moedas para o óbvio pagamento. A menos que…
A menos que fosse um borlista! Nesse caso não se estava nos bancos, ou de pé, nos quatro lugares marcados junto a varões de ferro plastificados. Mas pendurado na porta, em equilíbrio instável e dependendo dos dedos e da sua força, bem como dos solavancos do autocarro ou carro eléctrico.
E era aqui que a tirania se manifestava, com um valente carolo na cabeça ou uma traiçoeira pancada nos nós dos dedos. O alicate era terrível nas mãos dos façanhudos cobradores da Carris.
Já na ferrovia a coisa era – é – diferente: nem sempre há a garantia de o ver ou ouvir a trincar bilhetes, pelo que era – é – um jogo de caça e caçador o conseguir viajar de borla. Em o ouvindo numa das portas de extremo da carruagem, discretamente os borlistas vão passando para a carruagem seguinte. A menos que já se esteja na última, o que leva a esperar que se pare numa estação para aí sair e esperar pelo comboio seguinte.
Hoje começa a ser raro, pelo menos aqui na capital alfacinha, ver ou ouvir o trinca-bilhetes.
A actual bilhética magnética não se coaduna com os furinhos do alicate, sejam estes redondos, quadrados ou em estrelhinha. Na Carris já não existem e na CP, a breve trecho, também não. Será um símbolo de tirania que desaparecerá, não criando mais histórias ou estórias para recordar.
Porque, de uma forma ou de outra, a simples visão do alicate tem provocado sorrisos francos e nostálgicos. Não sei se das vivências se da vingança de o ver nas mãos de um “civil”. Que o encontrei na feira da ladra, adquirido depois de algum regateio com o velhote que o vendia.
Excepção feita, quanto a sorrisos, a um colega excêntrico que é. Depois de um leve esboço de sorriso, atirou-me com um “Para que queres tu isso?” Mas é um excêntrico!
Das várias estórias que a memória me conta, ressalvo agora uma, mais sensação que acção:
A inveja que sentíamos quando se via algum passageiro confrontar o trinca-bilhetes com o conteúdo da carteira ou o revirar da lapela do casaco. Que, acto continuo, recebia um sorriso de condescendência do cobrador e não lhe tirava o bilhete. Ou obliterava com o malfadado alicate.
Claro que, à época, não me passava pela cabeça que alguns desses passageiros especiais seriam membros da PIDE-DGS de má memória e bem mais tirânica que o alicate, fazendo tremer o pica bem mais que o alicate os borlistas.
Quando, já rapazola e após a revolução, surgiram os passes sociais comprados mensalmente, que alegria ter também algo para mostrar e, assim, fugir do alicate, dos “clac” da furação e dos seus carolos.

Em breve será completamente obsoleto! Ficará aqui este, arrumadinho a um canto, para obliterar ou validar as memórias. E os sorrisos também.

By me

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