quinta-feira, 26 de junho de 2025

Pedro




Viveu como pôde, onde pôde. Comeu como pôde o que pôde.

De Kiev a Vladivostok, foi cumprindo o seu ofício militar até desistir e vir, embarcado ou não, até aqui onde a terra acaba e o mar começa. Há vinte e tal anos.

Foi trolha, almeida, coveiro. Foi o que os outros não quiseram, enquanto pôde. Casou e foi corrido, que o álcool é mau conselheiro. Nunca se drogou.

Sonhava. Sonhava, muito timidamente, em ter uma companheira. E sorria, enternecido e envergonhado, quando disso falava. Sonhava em regressar à Ucrania e às divisas de capitão, “para ajudar, que aquilo está mau”. Sonhava acordado, sabendo que estava a sonhar.

Rebelde a regras, como é apanágio nestes casos prolongados, nunca se deu bem nos abrigos que lhe arranjaram. Conheci-o a viver num carro velho. O apoio social internou-o num hospital e, quando regressou, tinham roubado o carro e todo o conteúdo. Todos os seus bens. Contou-me, alguns dias depois, que tinha encontrado uma das suas malas bem velhas no lixo. Vazia, claro. Refugiou-se com uns papelões e paletes, num recanto pacato, a meia distância entre um salão paroquial e uma sala de culto islâmica. Dizia que estava bem acompanhado.

De dia parava por aqui, na entrada da lavandaria. Não incomodava ninguém, lá dentro há cadeiras sem consumo obrigatório e o calor das máquinas é reconfortante. Toleravam-no.

Encontrávamo-nos quase todos os dias por aqui, no cruzamento da rua, as mais das vezes junto ao café-pastelaria. Amiúde era ele que se aproximava, com o seu passo lento e sofrido. E entre uma moeda para um “café” e um ou dois cigarros que partilhávamos, falávamos. De deus, de militares, da vida e dos ofícios, das pessoas. Algumas vezes, em indo eu à lojinha por um artigo de última hora para o meu almoço ou jantar, convidei-o a entrar e escolher o dele. Acedia relutante e sempre comedido no que trazia. Nunca foi vinho.

Mal visto pela vizinhança, poucos éramos os que lhe dirigiam a palavra. E os demais quando dele falavam sempre foi com sete pedras na mão. E foi de uma dessas bocas que hoje fiquei sabendo que as sirenes que ouvi de manhã eram para lhe vir buscar o corpo.

Creio que este é o único epitáfio que o Pedro terá.

 

By me

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