quarta-feira, 23 de agosto de 2017

Todo o mundo



Não gostaria de parecer erudito ou mesmo especialista em literatura. Não o sou de forma alguma.
Mas há algo que me faz espécie: A esmagadora maioria daqueles com quem falo sobre o assunto dizem-me desconhecer aquilo a que se costuma chamar “Todo o mundo e ninguém”, parte do Auto da Lusitânia de Gil Vicente.
E espanta-me isto porque é algo que julgo conhecer desde sempre, que é como quem diz, desde os bancos da escola.
Na minha mente, este pedaço sempre terá feito parte dos conteúdos dos liceus e espanta-me que tantos, de idades tão díspares, não o conheçam ou mesmo reconheçam.
Para obstar aos que não conhecem, aqui deixo o texto em causa, ilustrado com um retrato do autor que fui “palmar” algures na net.


Entra Todo o Mundo, rico mercador, e faz que anda buscando alguma cousa que perdeu; e logo após, um homem, vestido como pobre. Este se chama Ninguém e diz:

Ninguém: Que andas tu aí buscando?

Todo o Mundo: Mil cousas ando a buscar:
                         delas não posso achar,
                         porém ando porfiando
                         por quão bom é porfiar.

Ninguém: Como hás nome, cavaleiro?

Todo o Mundo: Eu hei nome Todo o Mundo
                         e meu tempo todo inteiro
                         sempre é buscar dinheiro
                         e sempre nisto me fundo.

Ninguém: Eu hei nome Ninguém,
               e busco a consciência.

Belzebu: Esta é boa experiência:
             Dinato, escreve isto bem.

Dinato: Que escreverei, companheiro?

Belzebu: Que Ninguém busca consciência.
              e Todo o Mundo dinheiro.

Ninguém: E agora que buscas lá?

Todo o Mundo: Busco honra muito grande.

Ninguém: E eu virtude, que Deus mande
               que tope com ela já.

Belzebu: Outra adição nos acude:
              escreve logo aí, a fundo,
              que busca honra Todo o Mundo
              e Ninguém busca virtude.

Ninguém: Buscas outro mor bem qu'esse?

Todo o Mundo: Busco mais quem me louvasse
                         tudo quanto eu fizesse.

Ninguém: E eu quem me repreendesse
               em cada cousa que errasse.

Belzebu: Escreve mais.

Dinato: Que tens sabido?

Belzebu: Que quer em extremo grado
              Todo o Mundo ser louvado,
              e Ninguém ser repreendido.

Ninguém: Buscas mais, amigo meu?

Todo o Mundo: Busco a vida a quem ma dê.

Ninguém: A vida não sei que é,
               a morte conheço eu.

Belzebu: Escreve lá outra sorte.

Dinato: Que sorte?

Belzebu: Muito garrida:
              Todo o Mundo busca a vida
              e Ninguém conhece a morte.

Todo o Mundo: E mais queria o paraíso,
                         sem mo Ninguém estorvar.

Ninguém: E eu ponho-me a pagar
               quanto devo para isso.

Belzebu: Escreve com muito aviso.

Dinato: Que escreverei?

Belzebu: Escreve
              que Todo o Mundo quer paraíso
              e Ninguém paga o que deve.

Todo o Mundo: Folgo muito d'enganar,
                         e mentir nasceu comigo.

Ninguém: Eu sempre verdade digo
               sem nunca me desviar.

Belzebu: Ora escreve lá, compadre,
              não sejas tu preguiçoso.

Dinato: Quê?

Belzebu: Que Todo o Mundo é mentiroso,
              E Ninguém diz a verdade.

Ninguém: Que mais buscas?

Todo o Mundo: Lisonjear.

Ninguém: Eu sou todo desengano.

Belzebu: Escreve, ande lá, mano.

Dinato: Que me mandas assentar?

Belzebu: Põe aí mui declarado,
              não te fique no tinteiro:
              Todo o Mundo é lisonjeiro,

              e Ninguém desenganado.
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