sexta-feira, 12 de setembro de 2014

Ignotus deus



“…
Certo dia, prostrava-se na laje da capela, junto ao altar, em profunda meditação, entre leves gemidos pesarosos, ab imo pectore transportados, quando deu por que o clarão de luz colorida que o vitral projectava junto de si tomava uma intensidade forte e parecia deflagrar em pequenas chamas fosforescentes. E antes de se erguer, num arrepio sobressaltado, uma ciência íntima dizia-lhe que a capela estava cheia de presenças.
Estava. O frade arregalou os olhos pela nave, amparado à colunata, o semblante franzido de terror. Sentados pelos bancos, encostados aos genunflectórios, dispostos em magotes, em torno das colunas, agrupava-se um ror de criaturas disformes e díspares que o olhavam em sossego. De entre elas, poucas tinham o aspecto humano, sendo as demais avantajadas de membros e de olhos, ou carentes deles, as peles rugosas ou tufadas de estranha lã, as mãos em forma de garra, e em algumas ondulavam cristas e caudas. Destas figuras, mostravam-se umas escuras ou baças e resplendiam as outras, alumiando os recantos em volta.
Alçou o padre uma cruz de pau, da fraqueza fez força, e brandindo-a sobre as presenças que se lhe configuravam como a sexta legião dos demónios, entrou a exorcisar, em altos e trémulos brados:
- Adjurgoo ab te Serpens Imundissima…
Mas uma personagem que, muito perto, na primeira fila, o olhava complacente, cabeçorra enorme e rugada levemente descaída, as garras sobre os joelhos pontudos, a cauda negligentemente ente os pésdisformes e escamados, meio escondida pela capa fulva, interrompeu-o com blandícia:
- Ts, ts, ts, meu amigo, deixemo-nos disso, sim?
O padre perfilou-se, assombrado, incapaz de resistir àquela solicitação serena e ficou-se hirto, a olhar, sem pinga de sangue.
A figura voltou ligeiramente a cabeça e chamou, para trás.
- Eh, lá, tu aí em baixo, chega-te cá!
Um ser fulgurante, de feição sorridente e amplas barbas brancas irradiando paz e bondade, levantou-se e caminhou pela nave, os dedos dos pés mal aflorando o lajedo. Chegando perto da personagem que o havia solicitado, curvou-se um pouco e ficou a aguardar.
- Então durante todos estes séculos persuadiste estes pobres seres que eras um deus único? – admoestou a estranha figura, com um profundo suspiro. E, após, designando o frade com um ligeiro avceno:
- Bom, leva lá este para o teu céu, ou lá como se chama, e procura-me depois, que temos contas a ajustar…”

in “Ignotus deus”, in “A inaudita guerra da avenida Gago Coutinho”, por Mário de Carvalho

Imagem: by me

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