domingo, 6 de abril de 2014

Em trânsito



Teria uns cinquentas e estava bêbado. Pelo que me contaram, vinha da Amadora, onde dois outros, que o não conheciam, decidiram acompanha-lo a casa, já na linha da Azambuja, porque com ele tinha uma criança de uns dez anitos. No Oriente, ao sair do comboio, teve uma queda bem feia, magoando a sério o joelho recém operado, mal conseguindo andar.
“A culpa é sua! Quem o mandou beber?”, dizia-lhe a filha, talvez que habituada a tais situações.
Quando chegou a esposa, entretanto chamada e que largara o trabalho mas que a ele teria que regressar, seguiram os três, mais o segurança, para a saída da estação.
Soube depois que recusara o auxílio do INEM, entretanto chamado.
“Eles podiam estar a salvar gente, em vez de vir atender bêbados!” disse-me o segurança.
Os que os acompanhavam seguiram de volta às suas vidas: um de regresso à Amadora, o outro para o Barreiro.

E enquanto esperava eu pelo meu comboio, sou abordado por uma senhora. Magra, de farto cabelo e tez escura, andava de um lado para o outro no cais, olhando sem perceber os quadros indicadores.
Perguntou-me ela onde poderia apanhar o metro, num inglês que supus ser do outro lado do Atlântico.
Antes de lhe dar a informação, perguntei-lhe para onde queria ir e disse-me que para algures perto de Sintra.
Quando soube que não havia, que teria que apanhar o comboio e ainda mudar a meio, comentou que esperar aquela quase meia hora que faltava era muito. E afastou-se lesta, com a criança pela mão, em direcção às escadas. Três ou quatro passos dados parou, voltou-se e atirou-me um “thanks” rápido e sorridente, contrastando com o ar preocupado e triste que lhe marcava o semblante.
Não a vi subir naquele comboio, quase meia hora depois, onde eu mesmo embarquei.

Na ponta do cais, mesmo no último banco, uma mocinha chorava e falava ao telemóvel.
Quando, no meu lento caminhar de “queimar tempo”, passei por ela, ouvi-a exclamar, não muito alto, por entre os soluços:
“E ela é branca e tem umas mamas maiores que as minhas, não é cabrão?”
O meu deambular na plataforma passou a ter como ponto de inversão o penúltimo banco. Que há tristezas e raivas que devem ser consumidas pudicamente a sós, seja qual for a idade, a hora e o local.
Ficou sentada no mesmo lugar quando o meu comboio partiu.

Algures a meio, estrategicamente sentadas para que em parando a composição ficasse por perto, três idosas.
Discutiam sobre a estação onde deveriam descer para mudar de linha, lá mais à frente.
Uma delas afirmava, em tom de quem não aceita réplicas, que seria em Entrecampos.
“Era assim da última vez que aqui andei! E foi assim que fiz! Até há comboios que acabam ali e têm isso escrito à frente!”
Ponderei intervir. Afinal, não é nada simpático descer numa estação onde não pára o comboio que se quer tomar há, pelo menos, sete ou oito anos. Menos ainda àquela hora da noite, ficando solitárias numa estação vazia.
Não o fiz. Uma outra idosa, da outra ponta do banco que com elas partilhava, esclareceu-as. Fazendo a boa acção do dia, p’la certa.
Esperaram as quatro, na mesma estação em que eu esperei e os mesmos vinte minutos, pelo outro comboio.

Caminhando sobre o cascalho, entre um dos carris a beira do cais, um rapaz. Vintes e tais, negro, de cabeleira farta e muito magro, é um velho conhecido. Costuma percorrer as composições, pedindo uma moeda para uma sopa ou uma sandes. Também já o tenho visto, noutras estações, a fazer o que aqui fazia: recolhendo as pontas de cigarro que para ali são atiradas na impaciência de um transporte que não chega. Ou os meios fumados na satisfação da sua chegada.
Fez o mesmo na estação de transbordo.
Sempre com um olho atento no chão e o outro atento à eventual chegada de seguranças ferroviários, que com ele correm deste mister.
Partilhámos o mesmo segundo comboio e saiu onde costuma sair.

Um homem novo aborda-me, querendo saber de que linha partiria o comboio para a Reboleira. Tive dificuldade em o perceber, já que a mistura de criolo e português não é fácil. Expliquei-lhe que, àquela hora, não havia. E que teria que embarcar no próximo e mudar algumas estações depois. Eu próprio faria essa mudança e que bastaria que viesse comigo. Fê-lo.
Sempre com um ar assustado, não me largando de vista nem no cais nem já sentados a bordo. Por três vezes, já em trânsito, me perguntou se faltaria muito.
Só o vi sorrir e descontrair quando, na estação de mudança, leu no quadro indicador o nome do seu destino.
O seu insólito “obrigado”, de mãos postas e cabeça curvada, pagou principescamente um incómodo que não tive.

Em chegando à minha estação de destino, mesmo sendo de noite, mudei de cais e fui confirmar.
Este sapato, fotografado de manhã, sobreviveu a mais um sábado aqui caído. O quarto sábado que o vejo ali, desafiando as limpezas que são feitas por equipas de três, de colete laranja, saco numa mão e pinça longa na outra.
O campeão de persistência esteve aqui, mais ou menos onde está este, durante pouco mais de onze meses.
Tal como o outro, também este agora se vai transformando em amigo fiel, não respondendo ao meu cumprimento diário porque, suponho eu, estará entretido com as memórias dos lugares por onde passou e as bolas que chutou. E, quem sabe, chorando o seu par, distante para além da vista.


O “tédio” de uma viagem rotineira e tardia do trabalho para casa só existe dentro de nós!

By me 

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