Imagine que é alérgico à penicilina e entra inconsciente num hospital longe da sua área de residência, depois de ter sofrido um acidente. Se não houver ninguém consigo que transmita essa informação, arrisca-se a ser-lhe administrada uma substância que, em última análise, pode levar à morte.
Esta é uma situação-tipo em que a existência do registo de saúde electrónico (RSE) que o Governo quer criar podia, em teoria, salvar-lhe a vida. Terminou ontem o prazo para a apresentação das fases para a sua implantação: 2012 é o prazo final para estar no terreno, mas o bastonário da Ordem dos Médicos, Pedro Nunes, diz que o sistema nunca será seguro, se não avançar um projecto que se arrasta há mais de seis anos: a criação da assinatura digital dos médicos, à semelhança do que já acontece com os advogados.
Pedro Nunes sublinha que "sem este problema estar resolvido tudo o resto é conversa. É por aí que se devia começar". O responsável refere que o Ministério da Saúde está a tentar arrancar com um projecto bastante menos complexo, a declaração de óbito digital, que ainda não saiu do papel por falta da assinatura. A certa altura foi sugerido que para criar o documento digital bastaria que o médico introduzisse nome e número da cédula profissional, mas a ordem recusou, nota, pois seria "um mecanismo permeável a fraudes", já que estes dados até nas vinhetas das receitas estão visíveis.
A ideia é que o RSE venha a ser um repositório de informação clínica relevante para a prestação de cuidados de saúde, acessível a médicos e enfermeiros a partir de qualquer unidade de saúde do país (pública ou privada). Em Portugal só dez por cento dos dados de saúde circulam por via electrónica, estima o grupo de trabalho criado pelo Governo para estudar a situação.
O grupo de trabalho debateu também a questão da segurança em unidades de saúde e chegou à conclusão que serão "escassas ou pouco consistentes as iniciativas de definição de políticas de segurança abrangentes". José Carlos Nascimento, assessor do secretário de Estado da Saúde para as tecnologias de informação, não tem dúvida que os níveis de segurança melhorarão com o novo sistema. O que acontece agora? Muitos processos clínicos em papel estão numa gaveta de um arquivo numa sala de uma unidade de saúde. Quem lá entra? Quem pode ler o processo quando ele anda a circular ou está pousado numa secretária?
O bastonário vê a criação do registo como "positiva", mas diz que os problemas de segurança "serão mais complexos", já que a centralização de dados "facilita o acesso a mais utilizadores e à distância".
Questões em aberto
Os utilizadores com acesso ao registo têm que ficar bem definidos, sublinha José Carlos Nascimento, dando o exemplo da Defesa, em que nem todos os oficiais estão credenciados para ter acesso "a documentos top secret". O registo do rasto dos utilizadores é um dos aspectos mais importantes "para poder haver responsabilização", ao nível do acesso, tratamento, transmissão e divulgação de dados, nota.
Outro problema: imagine que parte um pé e entra numa urgência onde um médico ou um enfermeiro acedem ao seu registo electrónico e, além de saberem que toma comprimidos para a hipertensão, têm também conhecimento que sofre de esquizofrenia. Será que quer que este tipo de informação esteja disponível em qualquer acto médico?
Este é o tipo de situação que, em princípio, não poderá acontecer, ressalva José Carlos Nascimento. Vão entrar agora na fase de tipificação dos "casos de uso", para definir a informação acessível em cada contexto. Que tipo de dados pode um profissional de saúde conhecer, por exemplo, numa situação de emergência? Numa consulta de rotina? Esta reflexão será feita com médicos e vai ser pedido à Comissão Nacional de Protecção de Dados que acompanhe o processo, em vez de apenas dar um parecer no final, explica.
Muito está ainda em aberto, sublinha José Carlos Nascimento. Uma coisa é certa: "o cidadão é proprietário desses dados" e tem que poder validar a informação e dizer: "Tipo sanguíneo: O Rh+? Eu?" Mas nem toda a informação pode ser acedida pelo cidadão, nota Pedro Nunes, tem que haver dois níveis: dados objectivos e "apreciações subjectivas dos médicos", "que não podem ser do conhecimento do utente".
O utente hoje já tem direito a conhecer o seu processo clínico em papel, mas o acesso só pode ser feito através de um médico. Também no registo electrónico deverá haver informação sensível que necessita de mediação médica, refere o responsável do Ministério da Saúde.
Manuel José Soares, porta-voz da Comissão de Utentes de Saúde do Médio Tejo, defende por sua vez que avançar com o registo "sem estarem satisfeitos cuidados de saúde para muitos portugueses é começar pelo telhado". Guilherme Castro Henriques, coordenador do Movimento de Utentes dos Serviços de Saúde, diz que o projecto apenas peca por tardio, porque será um óptimo instrumento de prevenção do erro médico
Texto in: www.publico.pt
Imagem: edit by me
Esta é uma situação-tipo em que a existência do registo de saúde electrónico (RSE) que o Governo quer criar podia, em teoria, salvar-lhe a vida. Terminou ontem o prazo para a apresentação das fases para a sua implantação: 2012 é o prazo final para estar no terreno, mas o bastonário da Ordem dos Médicos, Pedro Nunes, diz que o sistema nunca será seguro, se não avançar um projecto que se arrasta há mais de seis anos: a criação da assinatura digital dos médicos, à semelhança do que já acontece com os advogados.
Pedro Nunes sublinha que "sem este problema estar resolvido tudo o resto é conversa. É por aí que se devia começar". O responsável refere que o Ministério da Saúde está a tentar arrancar com um projecto bastante menos complexo, a declaração de óbito digital, que ainda não saiu do papel por falta da assinatura. A certa altura foi sugerido que para criar o documento digital bastaria que o médico introduzisse nome e número da cédula profissional, mas a ordem recusou, nota, pois seria "um mecanismo permeável a fraudes", já que estes dados até nas vinhetas das receitas estão visíveis.
A ideia é que o RSE venha a ser um repositório de informação clínica relevante para a prestação de cuidados de saúde, acessível a médicos e enfermeiros a partir de qualquer unidade de saúde do país (pública ou privada). Em Portugal só dez por cento dos dados de saúde circulam por via electrónica, estima o grupo de trabalho criado pelo Governo para estudar a situação.
O grupo de trabalho debateu também a questão da segurança em unidades de saúde e chegou à conclusão que serão "escassas ou pouco consistentes as iniciativas de definição de políticas de segurança abrangentes". José Carlos Nascimento, assessor do secretário de Estado da Saúde para as tecnologias de informação, não tem dúvida que os níveis de segurança melhorarão com o novo sistema. O que acontece agora? Muitos processos clínicos em papel estão numa gaveta de um arquivo numa sala de uma unidade de saúde. Quem lá entra? Quem pode ler o processo quando ele anda a circular ou está pousado numa secretária?
O bastonário vê a criação do registo como "positiva", mas diz que os problemas de segurança "serão mais complexos", já que a centralização de dados "facilita o acesso a mais utilizadores e à distância".
Questões em aberto
Os utilizadores com acesso ao registo têm que ficar bem definidos, sublinha José Carlos Nascimento, dando o exemplo da Defesa, em que nem todos os oficiais estão credenciados para ter acesso "a documentos top secret". O registo do rasto dos utilizadores é um dos aspectos mais importantes "para poder haver responsabilização", ao nível do acesso, tratamento, transmissão e divulgação de dados, nota.
Outro problema: imagine que parte um pé e entra numa urgência onde um médico ou um enfermeiro acedem ao seu registo electrónico e, além de saberem que toma comprimidos para a hipertensão, têm também conhecimento que sofre de esquizofrenia. Será que quer que este tipo de informação esteja disponível em qualquer acto médico?
Este é o tipo de situação que, em princípio, não poderá acontecer, ressalva José Carlos Nascimento. Vão entrar agora na fase de tipificação dos "casos de uso", para definir a informação acessível em cada contexto. Que tipo de dados pode um profissional de saúde conhecer, por exemplo, numa situação de emergência? Numa consulta de rotina? Esta reflexão será feita com médicos e vai ser pedido à Comissão Nacional de Protecção de Dados que acompanhe o processo, em vez de apenas dar um parecer no final, explica.
Muito está ainda em aberto, sublinha José Carlos Nascimento. Uma coisa é certa: "o cidadão é proprietário desses dados" e tem que poder validar a informação e dizer: "Tipo sanguíneo: O Rh+? Eu?" Mas nem toda a informação pode ser acedida pelo cidadão, nota Pedro Nunes, tem que haver dois níveis: dados objectivos e "apreciações subjectivas dos médicos", "que não podem ser do conhecimento do utente".
O utente hoje já tem direito a conhecer o seu processo clínico em papel, mas o acesso só pode ser feito através de um médico. Também no registo electrónico deverá haver informação sensível que necessita de mediação médica, refere o responsável do Ministério da Saúde.
Manuel José Soares, porta-voz da Comissão de Utentes de Saúde do Médio Tejo, defende por sua vez que avançar com o registo "sem estarem satisfeitos cuidados de saúde para muitos portugueses é começar pelo telhado". Guilherme Castro Henriques, coordenador do Movimento de Utentes dos Serviços de Saúde, diz que o projecto apenas peca por tardio, porque será um óptimo instrumento de prevenção do erro médico
Texto in: www.publico.pt
Imagem: edit by me
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