sexta-feira, 15 de janeiro de 2010

Peças raras

É a primeira coisa que deles sabemos: a música.
Os amola tesoiras e navalhas, bem como reparadores de guarda-chuvas virados ou revirados faziam-se, e fazem-se, ouvir com esta flauta de pan em plástico. O seu toque, tão característico quanto qualquer outro pregão arcaico, ecoa nas paredes dos prédios, fazendo chegar a sua mensagem bem dentro das casas. Principalmente aos ouvidos das donas de casa que estejam de janela aberta e possuam uma qualquer faca menos cortante. E que estejam de vontade de descer para fazer a reparação, no lugar de desistir da reparação e optar por ser mais um elemento desta sociedade de consumo acutilante, comprando uma nova e jogando fora a velha.
Estas atitudes impostas por governantes e empresários acabam por fazer extinguir estes ofícios que, para além de serem um elemento de poupança, são também a forma do séc. XX para os bufarinheiros, menestréis e outros que, indo de bairro em bairro ou de povoação em povoação, levavam as novas e velhas notícias, por vezes embelezadas com um toque pessoal de romance ou tragédia.
O toque da flauta de pan já quase não se ouve. No seu lugar ficaram os genéricos dos noticiários, por vezes tão ou mais fantasiosos quanto os reparadores errantes.
E as facas, aqueles instrumentos antiquérrimos da civilização humana, cujo uso é o de fraccionar controladamente o que quer que seja e só ultrapassados em idade pelo martelo ou equivalente, já não se afiam nem mantêm. São arrumados no fundo de uma qualquer gaveta ou caixa e substituídos por novos, com cabos mais modernos e atraentes, e cuja lâmina faz exactamente o mesmo que a sua predecessora.
Perde-se o prazer do manuseio de um objecto familiar e confortável na mão; perde-se a satisfação dos momentos de conversa enquanto o gume é recuperado ou a vareta endireitada ou substituída; perde-se um ofício que, em ultima análise, é ecológico.
Ganha-se o uso dos supermercados e centros comerciais, onde ninguém fala com ninguém; ganham-se objectos que sabemos durar pouco porque não os recuperaremos; aumentam os contratos a prazo e uma modernidade instável e fútil.





Texto e imagens: by me


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