domingo, 16 de setembro de 2018

Férias




Quando hoje vejo ou oiço falar da protecção que os pais dão aos seus filhos… Recordo a minha ida de férias quando catraio pequeno.
Com destino ao Algarve, onde viviam os meus avós, embarcava eu num autocarro na margem sul sozinho. Suponho que motorista e cobrador ficariam com a incumbência de me vigiar, mas ninguém me acompanhava, a um pirralho ainda na primária.
A viagem durava todo o dia, desde quase madrugada até depois da hora do lanche, com paragem em todas as vilas, aldeias e intermédias. E eu assistia a tudo isso sentado no banco da frente, com vista privilegiada para a estrada.
Havia sempre tempo, em algumas localidades, para ir à casinha ou para comprar um nogat, delícia de putos de então e que não se encontravam com facilidade pela capital.
O almoço era passado numa garagem, mais ou menos a meio caminho. Uma hora inteirinha, em que eu atacava o farnel que levava (hoje chamam-lhe marmita). Senti-me gente crescida quando, um ano, no lugar de lancheira me deram dinheiro para eu comer num café nas imediações da estação.
O desembarque era numa aldeia, sem estação ou abrigo, quase no meu destino. E haveria que esperar um pedaço ali, sentado ao lado do sinal de paragem em pedra, que viesse a outra carreira que haveria de me levar ao meu destino final. Nos primeiros tempos tinha o meu avô à minha espera, depois já nem isso, que eu bem sabia que seguiria na única que ali passasse. Sem nunca esquecer de cumprimentar o sr. Correia, cobrador dessa linha e que vivia lá na aldeia.
A casa de meus avós, na beira da estrada, distava uns bons quinhentos metros da aldeia, para um lado, e outro tanto da paragem anterior. Não fazia diferença, que a carreira faria o favor de parar ao portão, na curva, para eu desembarcar.
Tudo isto sem wi-fi, gps ou telefonemas inquisitórios sobre onde estaria eu, se teria comido bem ou se estaríamos atrasados. Matava o tempo contando os sinais de “curva” do caminho (eram muitos que não havia IPs então e o trajecto fazia-se pelas serras), tentando fazer ligação entre as matriculas dos carros que nos ultrapassavam com qualquer palavra ou expressão que me lembrasse ou palpitando sobre o tempo de ainda demoraria até à povoação seguinte, regulando-me pelo relógio da camionete. O meu primeiro relógio de pulso recebi-o eu aquando do exame da quarta classe, um Caunny de contrabando, a que perdi o rasto há muito mas de que acabei por encontrar uma fotografia na net há uns tempos.
O regresso de férias era equivalente, com a única diferença de embarcar na cidade perto da aldeia, no lugar de numa paragem intermédia. Que, se bem recordo, as carreiras tinham horários conjugados entre si e os comboios e a da manhã saía muito cedo para fazer a ligação com a estação da CP, lá na cidade.

Os bilhetes eram comprados a bordo, se o embarque não fosse numa estação ou fosse em cima da hora. O cobrador tinha um livrinho próprio, onde escrevia a origem e destino, bem como o valor, entregando parte ao passageiro, ficando o “canhoto” com ele. Mas antes de entregar era validado com um alicate destes, “obliterado” no seu termo correcto. Durante o trajecto, muitas folhas de papel furei eu com um, tentando fazer desenhos nela com o picotado obtido.
Sim porque levava um caderno para escrever e um bloco de papel de carta. Para os que não sabem, os blocos de papel de carta tinham um formato próprio, para que as folhas pudessem ser correctamente dobradas no sobrescrito. E mais finas, para que se pudessem escrever longas missivas e as cartas pouco pesassem. Eu tinha por dever enviar uma por semana para casa, que as férias duravam um mês ou mais. Tal como recebia uma por semana, em regra junto um ou dois livros para ler.

Quando vejo os pais hoje sobre protegerem os filhos, não lhes permitindo o subir a árvores, com mensagens regulares sobre localização e etc., alertando-os para um montão de perigos mas não lhes dando as ferramentas para os evitarem…
Lembro-me das aventuras de férias, saudáveis, incólumes e que me deram auto-suficiência para o resto da vida. A mim e a tantos outros.



By me

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