Há uns tempos tive uma aventura estranha!
Uma senhora, mais ou menos com a minha idade e que trabalha
numa cozinha, disse-me que não gostava de ler. Isso é uma coisa comum nos
tempos que correm, mas depois contou-me uns trocos mais:
Havia completado a quarta classe já depois de casada para
poder conseguir um emprego e nunca se tinha entendido bem com as letras e os
números.
Ela lá fazia o que tinha a fazer, no seu trabalho de prever
as ementas e as encomendas para a dispensa, e nos relatórios… mas era uma seca
e o que mais odiava no seu trabalho.
Entendi-a!
O relacionamento com a leitura fora tarde, demasiado tarde.
E forçado.
Mas fez-me pena que alguém não goste de ler apenas porque
não teve oportunidade de descobrir o prazer que dá.
Vai daí fiz-lhe uma proposta incomum: “Se eu lhe oferecer um
livro que sei que vai gostar, você lê-o todo? É pequeno, é coisa levezinha e
sei que vai gostar!”
Ficou atrapalhada mas anuiu ao desafio.
Pus-me em campo. Tinha em mente o livro de Luís Sepúlveda
“História de uma gaivota e do gato que a ensinou a voar”, obra de pequeno
volume, texto simples, mas de enredo bonito, acessível a qualquer gosto de
leitura. E procurei-o.
Acontece que a obra tinha sido adoptada pelo “plano nacional
de leitura” e recomendada para o 7º ano de escolaridade.
“Bem escolhido”, pensei. “Que bosta!” concluí. Que editora
que ficara com os direitos nesse tal “plano” ilustrara-o com desenhos infantis.
Nem sequer juvenis: infantis! E não me passaria pela cabeça oferecer tal edição
a esta senhora.
Ainda procurei uma edição anterior, em tudo quanto é lado,
mas nada, pelo que acabei por lhe dar o “Crónica dos bons malandros” de Mário
Zambujal. Sendo maior, referia-se a uma sociedade e comportamentos que ela
conhecia de perto.
Foi um sucesso, disse-me ela. Até na camioneta, de casa para
o trabalho e volta ela vinha entretida a ler, tal o prazer que tinha nele. E
disse-me que haveria de começar a prestar atenção aos livros que o marido
tinha, coisa que nunca havia feito.
Foi a minha boa acção do ano.
Quanto ao livro de Sepúlveda, acho que editores fizeram
disparate do grosso. Se, por um lado, retiram-no do mercado dos adultos com
essas ilustrações (e a obra não tem idade própria), por outro, com esses
desenhos estão a retirar dos pequenos o real prazer que a leitura nos dá:
imaginar o que lá não está.
Ao colocar ilustração num livro, está-se a condicionar a
imaginação do leitor ao desenho exibido. Rostos, cenários, cores, tamanhos… E
se uma classe inteira ler a mesma obra, ficam todos com a mesma condicionante.
Sabemos que o belo da literatura é a capacidade de o leitor
completar com as suas próprias vivências e imaginação aquilo que o autor quis
deixar em aberto. Com ilustrações isso morre. E é tanto mais grave quanto forem
infantis numa idade em que as crianças já não querem ser tratadas como tal.
Se quiserem ler a obra, que recomendo, sugiro que a procurem
num alfarrabista ou quejando, numa edição que não ilustrada. E deixem que a
vossa imaginação vogue ao vosso sabor e não condicionada por um ilustrador, por
muito bom que ele seja.
By me