Foi há uns trinta
anos, pouco mais. Não posso precisar.
Fui contratado por
uma agência para fazer as fotografias de uma campanha publicitária de uma
fábrica de camisas. Um trabalho de envergadura, com produção complexa, que
envolvia fotografar modelos em locais alugados, o produto acabado em lojas e a
fábrica em laboração.
Fotografado em
formato 9x12, com uma câmara Linhof que havia comprado pouco tempo antes.
Quando o trabalho
me chegou às mãos já quase tudo estava combinado entre o produtor e o cliente,
ficando a meu cargo as questões técnicas e estéticas, e pouco de publicidade ou
comunicação.
O trabalho correu
mais ou menos bem, com alguns episódios caricatos e algumas falhas da minha
parte, mas que fui resolvendo como podia.
O último dia de
produção era na fábrica. A mais complicada em termos de luz, considerando a
enormidade do espaço: uma nave grande, cheia de gente a costurar, com uma
mistura de luz natural entrada pelas janelas e telhado e luz fluorescente vinda
do tecto. Um pesadelo, se considerarmos que o trabalho era a cores e não havia
photoshop para correcções posteriores.
Enquanto o
produtor e o cliente ficavam à conversa, eu passeei-me pelo espaço, tentado
senti-lo: máquinas, pessoas, luz, acções…
E apercebi-me de
sorrisos constrangidos das senhoras que iam costurando ou cortando as peças de
tecido. Fui metendo conversa com elas.
Fiquei sabendo que
tinham sido avisadas da nossa vinda, que haveriam de vir com uma bata lavada e
penteadas para as fotografias. Mas bastantes, algumas com idade para serem
minhas avós, não queriam ser fotografadas. Ou por timidez, ou porque não
gostavam da forma como ali eram tratadas, ou tão simplesmente porque não
gostavam de fotografias. Sempre em tom baixo de conversa, não fosse serem
ouvidas.
Eu era ainda puto,
a experiência reduzida e o trabalho poderia lançar-me para outros voos. Mas
aquilo foi-me batendo forte. Muito forte! Eu iria fotografar gente que não
queria ser fotografada mas que era obrigada a isso pelo patrão. Não gostei. Nem
um nico!
Regressei para
junto do grupo que me aguardava: O dono da fábrica, a sua secretária, o
produtor e o Jorge F., o meu assistente, inigualável no seu desempenho, que me
entendia e me completava nas tarefas como nenhum outro com quem trabalhei. E
disse-lhes que o trabalho não podia ser feito como combinado.
Ficaram a olhar
para mim com ar espantado. E expliquei com argumentos técnicos e estéticos não
iriam ser possível fazer boas imagens com a presença humana, já que ficariam
tremidas ou com cores estranhas e que a solução seria fotografar a fábrica e a
maquinaria por pedaços em vez de por inteiro e sem a presença das operárias.
A discussão foi
renhida, entre mim, o dono da fábrica e o produtor. De parte, o Jorge, junto da
tralha entretanto já descarregada, olhava para mim e sorria discretamente.
Disse-me, mais tarde, que havia percebido o que eu queria com aquilo.
Acabei por ganhar
a batalha. Afinal, mesmo sendo puto, eu era o “expert” na coisa e aquilo que
propunha não iria alterar em muito o conjunto do projecto inicial. E, depois do
almoço, a produção parou por algumas, não muitas, horas.
As imagens foram
feitas, com as máquinas bonitas, brilhantes e eficientes, com peças a meio do
tratamento tanto de corte como de costura ou dobragem e embalamento. Mas sem
ninguém contrariado nelas. Nem com sorrisos contristados nem com mãos calejadas
ou com cicatrizes.
Quando, no final
dos trabalhos, estávamos a arrumar a tralha e as operárias regressaram às suas
máquinas, os sorrisos de algumas pagaram muito bem pago o só ter feito mais um
trabalho, já agendado, para este produtor.
Ainda hoje as
recordo.
Nota extra: A
fotografia não é da época. Os originais, em diapositivo 4x5, foram entregues ao
cliente na altura. Esta foi feita ali, a correr, para acompanhar o texto.
By me
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