segunda-feira, 2 de março de 2020

Ferramentas




Quando acontece eu abrir o meu canivete para fazer algo simples como abrir uma carta ou descascar uma peça de fruta e alguém por perto dizer “Chega para isso lá que tenho medo!”, costumo fazer uma brincadeira.
Dizendo-lhe “Vou-te mostrar algo”, aproximo a lâmina da sua cara. Na vertical e com o gume virado para mim.
Naturalmente que a reacção é a esperada: ou recuam, ou fecham os olhos, ou ficam rígidos…
De seguida acrescento “Agora espera”. E aproximo à mesma distância uma esferográfica que, entretanto, tirei do bolso.
A reacção também é a esperada: coisa nenhuma. Nem recuo nem manifestação de receio ou medo.
E continuo eu:
“Repara: apesar de me conheceres, de teres alguma confiança em mim e de saberes que não te iria fazer mal, tiveste medo da lâmina. Mas não tiveste medo algum da caneta. E, no entanto, em menos de coisa nenhuma, poderia espetar-ta no pescoço, antes que pudesses reagir.”
Assim é com tudo o que existe: por si mesmos os objectos não são perigosos!
É o uso que lhes damos que poderá, ou não, ser perigoso ou nefasto.
Um canivete, sabemo-lo, tanto pode servir para abrir uma garganta, para descascar uma maçã ou para talhar na madeira uma flauta.
Tal como uma caneta tanto pode servir para assinar uma declaração de guerra, preencher um impresso ou escrever um poema.
E, em última análise, sempre se pode concluir que a caneta é mais perigosa que um canivete, já que nos defendemos deste mas não daquela.
Em querendo, pode-se ainda usar uma velha analogia: “O poder da pena sobre a espada”.

O mesmo se pode dizer sobre a fotografia. Por si mesma ela não fará mal a ninguém. Mais ainda, temos a opinião generalizada que a fotografia e o acto de fotografar são questões técnicas ou artísticas, inócuas portanto.
No entanto, num bucólico jardim e numa tarde primaveril, tanto posso fotografar uma flor de uma árvore como posso afastar as folhas e discretamente fotografar o casal de namorados que ali se encontram à revelia do conhecimento das respectivas caras-metades.
A fotografia, por si mesma, nada tem de mal.
Mas quando a usamos para quebrar a privacidade de terceiros, para entrar abusivamente na intimidade de outrem, torna-se pérfida, odiosa, tão maléfica quanto qualquer outro objecto.

Um Domingo, faz tempo, fui fotografar fantasmas. Para o fazer como quero, a técnica implica o uso de um tripé e nele a câmara orientada para zonas onde passem pessoas. Nada discreto, portanto.
Pois no jardim onde o fiz, vários foram os adultos que, acompanhando crianças pequenas, olharam para mim e para a câmara e tripé com ar agressivo. Suponho que pensaram que eu estaria a fazer imagens dos pequenotes. E, nos tempos que correm, isso é “politicamente incorrecto”. Creio que nada disseram ou fizeram porque não me viram a espreitar pelo visor. Mas que as suas caras demonstraram desagrado, lá isso demonstraram.
Felizmente, para mim e para quem estava comigo, não se aperceberam que a câmara estava a ser usada com um cabo disparador, fabrico caseiro, e que se eu quisesse fazer as imagens que eles temiam não dariam por nada.
Quando não, lá teria eu que desmontar a tralha, mostrar-lhes o que tinha registado e explicar-lhes que procurava fantasmas. Inócuo, portanto.

A ferramenta nunca é perigosa. O uso que lhe damos é que sim!

Na imagem: tal disparador remoto construído por mim.



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