Quando falamos de
fotografia, muitas são as formas em que pode ser usada. Uma delas é a de livro
monotemático, resultado de um projecto do seu autor.
Este é o caso: “Quando
o carteiro chegar” é um livro com fotografias de caixas de correio, fotografado
por Mário Rui Feliciani nos morros e favelas de São Paulo e arredores, no
Brasil.Publicado em 1996.
Comprado quase que
ao preço da chuva na Book House, ali para os lados do Saldanha, em Lisboa.
Leia-se:
“Quem morou no
mato conhece o portão de longa data. É daqueles cuja madeira, por nova e bela,
não recebeu tinta. A chuva e o sol alternaram-se a mudar-lhe a cor para o
marrom enegrecido que se vê hoje, mas ainda não tiveram tempo para afectar a
precisão das arestas de cada ripa. Saiba-se, portanto, que é um portão de
ripas.
Atrás dele cresce
o morro e, no seu flanco, uma escada arrancada da terra. No alto, na crista
dessa vertente, a casinha simples em cuja janela se debruça um homem sisudo,
que me hostiliza com o olhar. Arranco o carro, envergonhado da invasão, mas a
imagem do objecto que me fizera parar obriga-me a voltar e estacionar do outro
lado da rua.
Amarrada ao
caibro, que é pilar do portão, pintada e protegida da chuva por telhado de
zinco, só pode ser uma caixa de correio. Tosca, porém bem mais cuidada do que
muitas das que tenho registado, só um detalhe deixa a cisma: o seu corpo, de
bloco de concreto, não trás abertura para a carta.
Clico deixando a
estranheza para depois e ouço meninos rindo, a caminho da escola:
“É já que ele te
joga um balde d’água”. Mas ele não me vê e volto para o carro onde um vizinho
me aborda.
- Ele está lá
dentro…
- Eu sei, mas não
quero falar com ele. Aquela é a sua caixa de correio? Estou fotografando caixas
e…
“Ele é
atrapalhado, moço. Faz anos mora aí sozinho. Tem espaço lá em cima, onde tinha
uma outra casa que podia ter alugado, mas desmanchou o telhado e fez essa
cerca. Os filhos são gente boa. Moram na cidade ao lado, mas – até mesmo eles! –
ele bota para fora quando vêm. Mal vi o senhor e pensei “se ele sobe, não
demora e desce correndo”. Veio da Bahia. Dizem que era de Sarava. Parece que
por isso a mulher largou dele e ele veio morar aqui. Prós meninos eu arrumei
colocação e hoje são pais de boas famílias. Mas o pai é assim, sempre sozinho.
Trabalha de cuidar de um sítio. Cozinha na lenha. Grita muita bobagem. Noutro
dia quase acertei nele, que tenho mulher e mãe morando comigo. Elas não têm que
ficar escutando aquelas coisas, têm? Mas não vale a pena. É um coitado, que
ninguém quer por perto. Se eu pudesse, mudava daqui, mas quem vai comprar uma
casa com um terreno tão grande…”
Sempre sozinho. A
mulher que abandona. O Sarava. Expulsa quem entra.
A caixa fechada. Pintada
com cuidado. A carta que nunca vem. Que não quer que venha. A falta da fresta
na caixa. A mulher fechada?”
Sem comentários:
Enviar um comentário