sexta-feira, 8 de junho de 2018

D'arquivo ou não tanto




Já tem uns anitos, isto.
Sei-o porque o telemóvel já está em desuso há uns tempos; sei-o porque o actual substituiu a necessidade de andar com uma lanterna; sei-o porque não uso caixa de fósforos, agora; sei-o pela data em que o escrevi e fotografei.
Mas se a imagem está bem datada na minha vivência, o texto bem poderia ter sido escrito hoje ou ontem. Infelizmente.

Conversas de corredor
Máquina do café, a meio da manhã, há algum tempo, três senhoras: uma técnica, uma jornalista, uma realizadora. Uma na casa dos vinte e poucos anos, outra na casa dos trinta e poucos anos, a outra já para além dos quarenta anos.
Falava-se de vestuário e de como todas elas raramente usavam saias, que só se sentiam confortáveis com o uso de calças.
A dado passo cito Mark Twain, aliás Samuel Clement, e o seu conhecidíssimo Tom Sawyer. Refiro o episódio em que o Tom, vestido de rapariga porque em fuga, é descoberto por uma velhota ao receber um qualquer objecto nas pernas, sentado, e as fecha. Se fosse de facto uma rapariga, tê-las-ia aberto para o receber em cima do vestido. Um pequeno pormenor de vivências e de observação de comportamentos.
O que me deixou com a boca aberta, para dentro, foi que nenhuma delas o tinha lido, ou a qualquer outra obra dele. Uma das senhoras ainda disse ter visto os desenhos animados na televisão, mas nada mais.
Bem sei que esta obra foi publicada pela primeira vez em 1876, há mais de um século. Bem sei que conta as aventuras de um rapaz no Mississipi. E que as aventuras de um rapaz que anda com os bolsos cheios das coisas mais estranhas, que foge de piratas e que encontra estratagemas para que os outros queiram pintar por ele a vedação da casa, não será o que haverá de mais actual.
Não será mesmo?
Há obras (literárias, cinematográficas, musicais, plásticas) que ultrapassam o seu contexto espaço-temporal e se tornam imortais por aquilo que nos contam e fazem sonhar ou pensar. Seja Platão, Cervantes ou Saramago (e que me desculpem todos os outros).

Na introdução do texto original de “As aventuras de Tom Sawyer” lê-se.
"Most of the adventures recorded in this book really occurred; one or two were experiences of my own, the rest those of boys who were schoolmates of mine. Huck Finn is drawn from life; Tom Sawyer also, but not from an individual -- he is a combination of the characteristics of three boys whom I knew, and therefore belongs to the composite order of architecture.
The odd superstitions touched upon were all prevalent among children and slaves in the West at the period of this story -- that is to say, thirty or forty years ago.
Although my book is intended mainly for the entertainment of boys and girls, I hope it will not be shunned by men and women on that account, for part of my plan has been to try to pleasantly remind adults of what they once were themselves, and of how they felt and thought and talked, and what queer enterprises they sometimes engaged in.
The author
Hartford, 1876"

Procurem-no na net, ou num livro em português, e depois de o lerem digam-me se algum de vós não é, em parte ou no todo, um Tom Sawyer do séc. XXI.
E como complemento, sugiro igualmente a leitura de “Um americano na corte do rei Artur”, do mesmo autor.

Na imagem: parte do que trago quase sempre nos bolsos. Faltam alguns itens.



By me

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