domingo, 13 de novembro de 2016

O calendário



Passei por este prédio há uns dias, ia de carro, era de noite e nem me apercebi que ele existia, diferenciado dos demais.
Hoje passei por ele, a pé, de dia e com o sol que se vê. E não pude não reparar nele, no seu imponente último uso.
Admirei-o na quase completa nudez da sua estrutura, pilhado que foi de quase tudo o pilhavel, abrigo fortuito de quem não tem melhor, objecto de eventual rusga policial ou abordagem de uma ONG da zona.
E fui fazer aquilo que não faria com qualquer outro prédio, convidativo que estava este: espreitar pelas janelas do piso térreo.
De um dos lados o soalho afunda-se, que as travessas que o suportam vão cedendo com o bicho ou com a água.
Do outro ainda se via uma porta interior, com almofada e vidros, em vias de sair.
E roupa e sapatos no chão. Não creio que estivessem em uso. A sua diversidade e os sacos por perto sugerem-me mais uma recolha de um contentor de lixo.
O que me surpreendeu (aliás, o que me fez ir espreitar) foi o que estava pendurado numa parede desta ainda sala: um calendário.
Publicidade de uma “loja de chinês” das imediações, mostra-nos os dias, as semanas e os meses do ano de 2012.
Preso num preguinho a uma altura conveniente, não lhe vi nenhuma marca assinalada, uma data especial, um dia que já foi futuro.
Está apenas ali, enfeitando uma parede que já se sabia condenada a mais que miséria, fazendo de uma sala sem portas nem janelas, com o soalho a ceder e coberto de lixo recolhido, um espaço personalizado e acolhedor.
Por vezes nem é preciso muito para tal.
Não entrei.
Pese embora as janelas assim franqueadas me dessem acesso fácil ao interior, não foi algum receio de risco ou sujidade que me impediu.
Foi esse mesmo calendário, a recordar-me que aquele espaço assim decrépito ainda é o lar de alguém.
E eu não devasso o lar de ninguém. Nem com o corpo, nem com o olhar nem com a câmara.

Fiquem-se com a fachada do número 23 da rua que vai dali a acolá.

By me

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