segunda-feira, 28 de dezembro de 2015

Na noite



No meu hábito de ir reparando no que me cerca e fazendo um eventual registo lúmico ou fonético, muitas são as situações que merecem um reparo maior que um simples olhar.
E se a importância de algumas se circunscreve ao tempo e lugar, outras há que, mesmo com essa condicionante, me sobrevivem na memória nem sei bem porquê.
Esta, que faz anos por estes dias, nunca me saiu da memória, mesmo que fugaz e inconsequente. Fica o relato, tal como o contei e ilustrei então, creio que na mesma noite.
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Estranhei-a assim que a vi.
Nada nela era estranho ou peculiar. Nem o cabelo, nem as feições, nem o sobretudo, nem a mala, nem o guarda-chuva, nem os sapatos… Nada nela estava fora do lugar. Excepto o lugar!
Aquela mulher, dos seus trintas bem medidos não pertencia ali.
Sapatos com salto de agulha com bem 10cm, imaculadamente pretos e brilhantes; sobretudo de boa fazenda cinzento escuro quase até ao tornozelo; mala de pele preta, fazendo toillete com os sapatos; cabelo preto um pouco armado mas não muito; a face com um toque, quase imperceptível de pintura; guarda-chuva de cabo longo e vareta curtas, mais parecendo uma sombrinha que feito para chuva… tudo nele estava equilibrado, justo, caro.
E era isso que era estranho. Naquela estação de caminho de ferro suburbana, por volta das onze da noite de quase fim de Dezembro, o seu olhar vagueava, meio perdido, pelos indicadores dos comboios seguintes, olhando, quase sem ver, a meia-dúzia de gente que, como eu, aguardava pelo transporte.
Deixei-a subir para o cais. Não era nada comigo e, de uma forma ou de outra, parecia ter encontrado a informação que procurava.
Passado um pouco também eu subi. Haveria tempo de um cigarrito, de um olhar e ver as luzes, o cais e as pessoas, quase sempre iguais. Talvez que nesta noite um pouco mais vazio que o habitual. Que nunca sei o que há para contar, com aparo ou luz.
Quatro pessoas aguardavam. Comigo cinco. E a senhora lá estava, sentada nos bancos de plástico sobre a pedra fria, joelhos bem unidos, malinha sobre eles, sombrinha de chuva ao lado.
Os anúncios sonoros estariam avariados, que nada nos disseram da chegada da composição. Mas ela viu-a, luzes fortes surgindo da curva. E levantou-se, aproximando-se da beira do cais. Ansiosa, pareceu-me.
Mas a sua inexperiência nestas lides ferroviárias e nesta linha em particular foi evidente: O seu olhar franziu-se quando se apercebeu que o comboio se encostava no outro cais. Olhou em redor, perturbada.
Primeiro para as escadas. Suponho que pensando se teria tempo de trocar de cais. Não teria. Depois para os quadros indicadores. Para um lado e para o outro, tentando perceber o que se passava.
À distância fiz-lhe um sorriso, talvez não perceptível na noite. E, com as mãos, um gesto de “calma”. Continuou olhando, perturbada, até se ir sentar de novo, na mesma posição.
Aproximei-me até uma distância audível mas não intrusiva, e disse-lhe:
“O nosso vem a seguir e pára aqui deste lado. Aquele segue mas fica a meio caminho.”
“Obrigada.” Disse sorrindo. Era triste, o seu sorriso. Nem bonito nem feio: apenas triste. E deixou-se ficar, já sem olhar para nada que não em frente.
Quatro minutos e meio cigarro depois chegou o que queríamos: eu, ela e os talvez já quinze demais passageiros que, entretanto, haviam subido ao cais. E todos embarcámos com direito a lugar sentado. Àquela hora, naquele dia, dificilmente não os haveria.
Quando desembarquei, vinte minutos depois, ficou a bordo: sentada, direita e muito composta, de olhar fixo bem para além da frente da composição. Nem bonita nem feia, apenas triste, nos seus trintas e tais, por sob as suas roupas e acessórios caros e ali invulgares.


Para onde iria e o que a teria “obrigado” a viajar ali, então e assim, nos subúrbios? Em que teia terá ficado presa?

By me

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