sexta-feira, 23 de janeiro de 2009

Surpresas da rotina


Este meu ofício tem características muito específicas. Entre elas a questão dos horários.
Ou bem que pego de madrugada, ainda antes do comum do cidadão acordar, saindo do trabalho por alturas do almoço, ou bem que entro a meio do dia largando já depois do jantar, ou anda começo a labuta lá para o fim do dia e chego a casa já a noite vai a meio, ou quase. Isto sem nenhum tipo de regularidade ou rotações padrão.
Aquele tipo de horário de entrar de manhã e sair pela tardinha, rotineiro, não o tenho. Mas também não tenho grandes possibilidades de convívio familiar ou social normal.
Mas, volta e meia, lá acontece, como tem sido esta semana. E decidi fazer e ver fazer e como o que muitos dos meus concidadãos fazem à sexta-feira depois do trabalho: ver as montras num centro comercial, jantar num fast-food e dar um pequeno passeio nocturno antes de regressar a casa.
Já nesta última fase, constato que chove. E, ainda que fosse um bom pedaço, não me apeteceu tirar o mini-guarda-chuva do saco. Até porque andar à chuva, se for de vontade, pode mesmo ser divertido.
Foi assim que fui parar às arcadas do teatro D. Maria, um dos nobres da cidade, bem no seu centro. Encostado à parede, por via das pingas, partilhei o espaço com a esplanada que ainda funcionava e com dois “sem abrigo”, como hoje se diz em “politicamente correcta” linguagem.
Estes já se estavam a enroscar nas suas caixas de cartão e cobertas frágeis, procurando que cada centímetro dos vãos de porta que ocupavam servissem de tecto e de parede, num recato de uma intimidade inexistente.
Fiquei por ali, de pé, fumando um cigarro e tentando ganhar coragem para o ultimo troço a pé e por entre os grosso pingos de água. Até que chegaram mais em busca de abrigo temporário.
Jovens, bem-dispostos, maltrapilhos mais por atitude social que por necessidade, iam partilhando duas garrafas de litro de cerveja e um pão de quilo. Três rapazes e uma rapariga.
Na exiguidade do espaço quase protegido da chuva, um deles abeirou-se mais de mim e ofereceu-me do pão que segurava. E perante o meu sorridente “Não, obrigado, já jantei”, deu um passo ao lado e debruçou-se sobre a mulher idosa que ali jazia, indiferente à nossa presença. Recebeu resposta alguma, tal como do homem que, na soleira do lado, repartia os cartões grandes e velhos com o cão que tinha por companhia.
Ainda não tinha acabado o seu périplo pelos que não consumiam na esplanada, já um dos outros se adiantava e repetia os gestos, desta feita com a garrafa de cerveja. Com as mesmas respostas.
O que me agradou de facto foi a partilha daqueles quatro. Que de partilha se tratou, que aquilo era o seu jantar: pão e cerveja. E em nada me senti incomodado por ter sido objecto da oferta, ao contrário dos que bebericavam os seus cafés e aguardente nas cadeiras de metal. Em boa verdade, o meu aspecto normal, desta feita acrescido da água que escorria da barba, boné e cabelo, pode enganar qualquer incauto.
Que esta generosidade genuína, esta partilha do pouco que se tem, vinda de gente com pouco mais de vinte anos, faz-me acreditar que ainda não estamos perdidos para todo o sempre.

Por vezes, vale a pena viver a rotina comum do cidadão banal (se é que ele existe). As surpresas – boas e más – estão sempre lá para a quebrar!

Como se deve imaginar, não poderia fotografar os intervenientes, ou mesmo o local, que por lá ficaram quando abalei.
Em alternativa, fica aqui uma imagem da estação do Rossio, ali logo ao lado, feita instantes depois com a minha câmara-que-tambem-faz-chamadas-telefónicas e que trago sempre pendurada do cinto.



Texto e imagem: by me

Sem comentários: