Gosto de pão e uma das poucas coisas que me desagradam na
cidade de Barcelona é o pão. Branquinho, desenxabido, quase que sem paladar.
Pelo menos o que por lá encontrei das várias vezes que por lá estive.
E acho que sei porque gosto tanto de pão: é que, estatisticamente,
sou alentejano. Parte dos meus antepassados é alfacinha ou saloia, a outra
parte é algarvia. Em tirando a média geográfica…
Aliás, a importância do pão é tal que, e para além de ser algo
cultivado e preparado desde tempos imemoriais, foi algo que neste período conturbado
em que vivemos não foi alvo de grandes restrições. Nem fechou por completo o comércio
nem a indústria e é um dos poucos motivos que permitem os cidadãos, confinados
que estão nas suas casas, justificarem escapadinhas.
Confesso que prefiro o pão de centeio ao de trigo. Pelo
menos ao de apenas de trigo. E esta minha preferência pelo centeio não se limita
ao pão: o whisky feito com centeio (rye whiskey) pode ser feito integralmente
de centeio ou parcialmente. Ao que julgo saber, o “Rye Whiskey” americano tem
na sua fórmula no mínimo metade de centeio, enquanto que o canadiano, também
chamado “Rye Whiskey” terá que ter no mínimo 10% deste cereal. Prefiro este
último, ainda que não seja muito comum por cá.
Dizia-se, ao tempo do Estado Novo, que o Alentejo era o
celeiro de Portugal, tal era a produção de trigo e centeio. Hoje assim não é,
sendo que importamos a maioria do trigo que consumimos. Influências ou ditames
europeus. E tanto que assim é que nos portos nacionais onde existem silos para
cereais existem também enormes aspiradores que retiram o cereal dos porões dos
navios, transportado que é a granel. E estas instalações, poucas e estratégicas
que são, estão guardadas com grades, arame farpado e guardas armados.
Seja como for que seja cultivado, negociado ou fabricado, trigo,
centeio, milho, forno ou pedra ou chapa, com ou sem fermento, com ou sem ervas,
dose individual ou de quilo, gosto de pão.
O de cada dia, como se refere nas liturgias, ou cozido para
a toda a semana no forno comunitário como fazia a minha avó.
Da importância do pão, no meu palato ou nos costumes
antigos, poderia ainda referir-se que a nossa tradição impõe o fazer de uma
cruz na massa crua mas já individualizada, em jeito de benzedura. Ou o cesto,
caixa ou saco de pão, existente em todas as casas. Ou o pano, normalmente de
linho, com que era coberto. Ou a faca do pão, em regra apenas com esse uso.
Possuo, guardada algures na arrecadação, a faca do pão de
meus avós. De gume simples com um palmo de comprido e de cabo de alpaca, também
conhecida por “prata dos pobres” e que, ao que sei, foi prenda de casamento,
está gasta, bem gasta, no seu centro, de tanto ter sido afiada ao longo de
dezenas de anos. Mas naquela casa de lavoira, nunca teve outro uso.
O pão vende-se hoje em todo o tipo de comércio alimentar:
padarias, mercearias, cafés e pastelaria, supermercados… Também de porta a
porta, muito menos hoje que em tempos, mesmo os da minha infância. Era habitual
deixar-se o saco de pão pendurado na porta de casa, com o dinheiro correspondente
ou um bilhete indicativo, para que de madrugada o distribuidor de pão ali o
deixasse para o pequeno-almoço (ou primeiro almoço) familiar. Ou, em
alternativa e nos bairros mais antigos, descer-se o saco de pão por uma corda e
da janela, para que o padeiro o colocasse e depois fosse subido até lá acima. “Imposições”
dos tempos anteriores aos elevadores generalizados.
Uma das memórias visuais mais antigas que tenho, e que só
foi esclarecida já homem feito, é de um cesto de vime maior que eu, umas calças
e pés em sandálias com meias: o padeiro à porta de minha casa na sua entrega
diária.
Em termos históricos acrescente-se que o “bolo do caco”, pão
tradicional da Madeira, tem a sua origem nas incursões piratas oriundas do
norte de África. Não é, se se seguir a tradição, cozido em forno fechado mas
antes em cima de uma pedra aquecida nas brasas. Tal como o pão “Naan”,
tradicional na cozinha indiana, é tradicionalmente assim fabricado: pedra ou
chapa. E o motivo é simples: Não apenas um forno não é transportável (navios ou
caravanas terrestres) como nem sempre se encontra material que permita
construir fornos, com resistência ao calor.
O pão faz parte das nossas vidas, gostemos ou não das tradições
enraizadas.
Nestes tempos conturbados, em que o simples acto de o
adquirir se tornou em algo de excepção, muitos foram aprender a fazê-lo:
recorrendo às suas memórias, ao Pantagruel ou caderninhos de folhas já gastas e
com nódoas, ou ao que vão prendendo na web. Os que não querem ou não sabem nem
uma coisa nem outra, fazem as filas que vamos sabendo nas portas das padarias,
que têm agora horários e frequências condicionadas.
Sinal de alívio sanitário será o regresso do pão à mesa de
todos: de manhã, a meio do dia, pela ceia…
Que a falta ou escassez de pão, e para além dos prazeres da
boca, é um forte indício da crise que atravessamos.
Que não vos falte!
By me
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