quinta-feira, 16 de abril de 2020

Ferramentas




Foi há uns anos.
Decorria a guerra ao estado islâmico, o terrorismo estava na ordem do dia, viam-se polícias fortemente armados pela cidade e os noticiários começavam e acabavam com o tema.
Encontrava-me numa estação de caminho-de-ferro, em Lisboa, à espera do comboio que me levaria a casa. Comigo tinha uma catana, acabadinha de comprar numa loja de ferramentas e que seria usada para umas fotografias que pretendia fazer.
Alguém entrou em pânico e denunciou-me à polícia e esta veio: quatro agentes, que não das forças de intervenção, vieram identificar-me, interrogar-me, com algum tipo de ameaça física. A coisa acabou bem, com direito a algum humor pelo caminho e algumas cavaqueiras com um deles tempos depois.
No meio de todo esse processo, em que os demais cidadãos se afastaram a medo para as pontas do cais de embarque, o meu Bilhete de Identidade foi pedido e foi consultada via rádio a central de polícia sobre a minha pessoa. E não repararam que o seu prazo de validade tinha expirado havia três anos.
Investigações à portuguesa.

Vem este episódio já velho a propósito daquilo que se vai falando sobre a eventualidade de se usarem os dados dos telemóveis – geolocalização – para controlo da população, nomeadamente os infectados com o covid19, e garantir que são cumpridas as normas e leis sobre isolamento e quarentena.
Na sua essência, a ideia parece positiva. Numa situação de excepção, medidas de excepção. Claro que o perigo consiste num eventual aproveitamento destes dados para um controlo generalizado dos cidadãos, coisa que põe em causa direitos fundamentais e que, em mãos erradas, pode ser muito perigoso. Para cada um e para todos.
No entanto, não nos esqueçamos de duas coisas:
Por um lado isso já existe. As operadoras de telecomunicações têm sempre disponíveis essas informações, quer seja com a triangulação a partir das suas antenas, quer seja com a “localização” que inocentemente muitos activam para acederem a mapas e outras aplicações e que, volta e meia, é usado para publicidade que recebem e nem sabem como.
Por outro, a obrigatoriedade de se possuir permanentemente um documento de identificação válido, que pode ser pedido em qualquer momento por qualquer agente de autoridade e em qualquer local. E que qualquer desses agentes pode usar para deter se sobre o cidadão houver qualquer mandato ou pedido. Ou outra regra ou lei. E o documento tem que estar válido, quando não…
Na sociedade não somos anónimos! Nem invisíveis! Faz muito tempo que o não somos. E querer fugir disso é uma utopia.
Cabe a cada um e a todos saber como essa identificação é usada, por quem e com que objectivo. E limitar o acesso a esses dados de um modo consciente.
Porque não há “ferramentas” boas ou más.
Tal como a minha caneta pode ser usada para uma lista de compras, um poema de amor ou uma declaração de guerra, também o meu canivete pode ser usado para descascar uma maçã, para talhar uma estátua ou erguer uma forca.



By me

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