Excerto do livro
“Introdução à análise da imagem”, de Martine Joly
“…
Trata-se de uma passagem
do livro “O foi do horizonte” de António Tabucchi, em que a personagem
principal, Spino, tenta encontrar a identidade de um morto graças a uma
fotografia que subtraíra da sua carteira.
Em casa instalou tudo na
cozinha para trabalhar mais à vontade do que no cubículo onde tem a câmara
escura. Durante a tarde tratara de arranjar os químicos e comprara uma tina de
plástico numa secção de jardinagem dos grandes armazéns. Conseguiu um
rectângulo de luz de trinta centímetros por quarenta e inseriu o negativo de
reprodução que mandara fazer num laboratório de confiança.
Imprimiu toda a
fotografia, deixando o ampliador aceso uns segundos mais que o necessário
porque a reprodução estava sobrexposta. Na tina do revelador os contornos
pareciam custar a delinear-se, como se uma realidade passada e longínqua,
irrevogável, resistisse a ser ressuscitada, se opusesse à profanação de olhos
curiosos e estranhos, se negasse a despertar num contexto que não lhe
pertencia. Sentiu que aquele grupo familiar se recusava a voltar ao palco das
imagens para satisfazer a curiosidade de um estranho, num lugar também
estranho, num tempo que já não é o seu. Percebeu igualmente que estava a evocar
fantasmas, que estava a tentar extorqui-los com o ignóbil estratagema da
química, numa cumplicidade forçada, num compromisso equívoco a que eles,
vitimas ignaras, se tinham prestado com uma pose improvisada diante de um
fotógrafo de então.
Torpe virtude a dos
instantâneos! Sorriem. E aquele sorriso é agora para ele, mesmo que não
queiram. A intimidade de um instante irrepetível da vida deles pertence-lhe
agora, dilatado no tempo e sempre idêntica a si mesma; pode vê-la quantas vezes
quiser, pendurada numa corda que atravessa a cozinha, a escorrer. Um risco em
diagonal, que a sobrexposição acentuou desmesuradamente, atravessa de lado a
lado os corpos deles e a paisagem deles. É o risco involuntário de uma unha, a
inevitável corrosão das coisas, o vestígio de um metal (chaves, relógios,
isqueiros) com o qual aqueles rostos coabitaram em bolsos e gavetas? Ou será a
marca voluntária de uma mão que queria apagar aquele passado?
Mas, seja como for,
aquele passado está agora num outro presente, expõe-se sem querer a uma
decifração. É o alpendre de uma casa modesta de subúrbio, os degraus são de
pedra, enrolada num dos pilares cresce uma trepadeira enfezada, florida de
campânulas claras; deve ser verão: adivinha-se uma luz ofuscante e os
fotografados têm roupas leves.
O rosto do homem tem uma
expressão surpreendida e, ao mesmo tempo, indolente. Está de camisa branca, com
as mangas arregaçadas, sentado por trás de uma mesinha de mármore, e tem à
frente um jarro de vidro, a que está encostado um jornal dobrado. Decerto
estava a ler, e o improvisado fotógrafo chamou-o para o fazer erguer os olhos.
A mãe vem a transpor a
soleira da porta, entrou na fotografia por acaso e nem sequer deu por isso. Tem
um aventalinho às flores, o rosto é magro. É ainda jovem, mas a sua juventude
parece já passada.
As duas crianças estão
sentadas num degrau, mas afastadas, alheias uma à outra. A menina tem duas
tranças queimadas pelo sol, óculos com aros de massa, usa tamanquinhos. No
regaço tem uma boneca de trapos. O rapaz está de sandálias e calções. Tem os
cotovelos sobre os joelhos e o queixo apoiado às mãos. Um rosto redondo, uns
cabelos em que brilham alguns caracóis, uns joelhos sujos. Do bolso dos calções
emerge a forquilha de uma fisga. Olha em frente, mas os seus olhos perdem-se
para lá da objectiva, como se seguisse uma aparição no ar, algo que escapa aos
outros fotografados. Olha ligeiramente para cima, as pupilas indicam-nos sem
qualquer possibilidade de erro. Talvez esteja a olhar para uma nuvem, para a
copa de uma árvore.
No canto da direita, onde
o terreno se prolonga num caminho empedrado, sobre o qual o telhado do alpendre
desenha uma escada de sombra, distingue-se o corpo enroscado de um cão. O olho
do fotógrafo, desatento à presença dele, apanhou-o por acaso no enquadramento e
a fotografia corta-lhe a cabeça. É um cachorro com malhas pretas que pode
parecer um fox mas é com certeza um rafeiro.
Algo o inquieta naquele
instantâneo plácido de desconhecidos; algo que parece esquivar-se à sua
decifração: um sinal escondido, um elemento aparentemente insignificante e que,
no entanto, pressente ser fundamental. Depois aproxima-se, atraído por um
pormenor. Através do vidro do jarro, onduladas por efeito da água, as letras do
jornal dobrado a meio que o homem tem à frente dizem: “Sur”. Emociona-se, dá
por isso e diz para consigo: a Argentina, estamos na Argentina, porque me
emociono?, o que é que a Argentina tem a ver? Mas agora sabe o que os olhos do
rapaz estão a fixar. Por trás do fotógrafo, imersa na vegetação, há uma moradia
cor-de-rosa e branca. O rapaz fixa uma janela com as persianas fechadas, porque
aquela persiana pode entreabir-se lentamente, e então…
E então o quê? Porque é
que estás a inventar nesta história? Que diabo está a tua imaginação a inventar
fazendo-se passar por memória? Mas justamente naquele instante, não em ficção,
bem real dentro de si, uma voz infantil chama distintamente: Biscoito é o nome
do cão, não pode ser outra coisa.
…”
Imagem: by me